Televisão, a ladra do tempo

Os pais deixaram de estar familiarizados com grande parte da programação destinada especificamente à infância. E a situação piora quando não conhecem o tipo de programas a que as suas crianças assistem quando recolhidas nos seus quartos.

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"O contexto familiar revela-se fundamental para a socialização do uso da televisão pelas crianças mais pequenas" Unsplash

A televisão é um excelente meio para informar, formar e distrair, e uma ferramenta de construção das representações sociais das crianças e jovens. Nesse sentido, não devemos menosprezar o papel que ela desempenha no quotidiano familiar.

Mesmo sabendo-se que grande parte do tempo passado em família, seja por adultos seja por crianças, em casa, é ocupado a ver programas de televisão, temo-nos esquecido do seu impacto e da maneira como pode influenciar a compreensão que as crianças têm do mundo.

A multiplicação dos aparelhos receptores conduziu a uma perda progressiva da centralidade do convívio do agregado familiar na chamada “sala de estar”, passando a sua presença a desdobrar-se por outros espaços da casa, nomeadamente nos quartos das crianças.

Esta tendência de mudança permitiu porventura resolver conflitos e tensões que, inevitavelmente, surgiam nos tempos do aparelho único, em resultado da escolha de programas nem sempre consensuais. Todavia, mostrou-nos também que, de uma forma geral, os pais deixaram de estar familiarizados com grande parte da programação destinada especificamente à infância. E a situação piora quando não conhecem o tipo de programas a que as suas crianças assistem quando recolhidas nos seus quartos.

Não deixa de ser curioso que ainda se possa “culpar a televisão” de coarctar o diálogo familiar, quando, precisamente, são os pais que promovem esse tipo de afastamento, com um simples “vai para o teu quarto ver televisão”. Desta forma, a conversa com os filhos a respeito do tema/conteúdo que lhes é apresentado, bem como a resposta às suas questões ou inquietações, deixam de acontecer.

Dados apurados num estudo, tendo por objectivo avaliar a atitude dos pais face ao visionamento da televisão pelos filhos, permitiram concluir que, dentre três modelos apresentados – Restritivo, funcionando como regulação ou proibição; Avaliativo, em que os pais conversam e atribuem significado ao que se está a ver; e Não Focalizado, indireto/não intencional –, o modelo Restritivo era o mais utilizado.

Em tempos idos, os pais usavam a interdição da televisão como consequência disciplinar de comportamentos inadequados, quer em casa quer na escola, maus resultados escolares, zangas com irmãos ou colegas. No fundo, a inibição temporária funcionava como o “papão” da minha geração.

O contexto familiar revela-se fundamental para a socialização do uso da televisão pelas crianças mais pequenas. As famílias devem determinar não só o tempo de consumo, mas também os tipos de programas e a qualidade dos mesmos, sem nunca esquecer, como Karl Popper alertou, que “as televisões não são baby sitters electrónicas” – os pais devem ter esta ideia muito presente quando entregam à televisão o tempo livre dos seus filhos.

É importante que os pais (ou outros adultos membros do agregado familiar) se sentem ao lado das crianças, sobretudo quando são muito pequenas, a assistir aos programas que elas apreciam e actuem como mediadores das mensagens televisivas. Só assim poderão ajudar a filtrar, diluir, confrontar, interpretar e atribuir significados aos conteúdos apresentados.

A criança tem de compreender as mensagens implícitas ou explícitas a que está exposta e saber o que representam, uma vez que o seu quadro de referências ainda não lhe permite fazê-lo.

Ao longo do seu crescimento e amadurecimento como espectador, será desejável que atinja níveis mais avançados naquilo que se tem designado por alfabetização mediática ou educação para os media. Contudo, esse caminho exigirá um trabalho sistemático para que possa aprender a linguagem e a gramática da imagem. A televisão, tal como a família e a escola, é uma das principais geradoras de representações sociais, facto que não pode nem dever ser desprezado.

É verdade que os baixos índices de consumo de leitura pelas crianças, jovens e famílias, bem como de outros produtos da indústria cultural em Portugal, podem justificar não só o tempo que as crianças e as suas famílias dedicam ao visionamento de programas, como podem também ser esclarecedores dos conteúdos seleccionados.

Podemos então entender esta relação de duas maneiras: educar para o uso da televisão, através da formação de telespectadores críticos e activos; e educar através da televisão, principalmente programando a emissão de conteúdos geradores de conhecimento e mediando o seu visionamento de forma crítica.

É consensual que as mensagens transmitidas pela televisão não são as mensagens que os telespectadores recebem, mas antes as que estes interpretam, consoante o seu quadro de referências culturais, religiosas, sociais ou económicas. Ora, relativamente a uma criança, há que ter sempre em conta esta premissa, dado que as suas referências ainda não estão adquiridas.

Outro aspecto a ter em consideração prende-se à associação directa entre o tempo gasto na visualização televisiva e a obesidade, seja por aquela incentivar o consumo de alimentos não saudáveis, seja por conduzir ao sedentarismo, comportamento que está na génese da obesidade e de alterações psicossociais.

Existe uma relação estudada entre a saúde mental e a obesidade, pois estar acima do peso acarreta efeitos adversos na autoestima da criança e, futuramente, como adolescente e adulto. Aproveitemos o tempo livre das nossas crianças para as pôr a brincar, a exercitar a criatividade, a explorar a natureza, para que se usufruam uma infância saudável e integral.

A chegada do YouTube às televisões aumentou a utilização do “pequeno ecrã” também como dispositivo de acesso ao visionamento de outros programas.

Os confinamentos resultantes da pandemia da covid-19 acrescentaram a esta novidade a descoberta, pelos mais novos, de canais de youtubers brasileiros com centenas de milhar de seguidores, que vieram substituir, em muitos casos, o linguajar do português europeu pelos termos correntes do português do Brasil. Hoje, segundo educadoras, é frequente ouvir os petizes nos recreios das escolas referirem-se a “grama” em vez de “relva”, a “ônibus” como “autocarro”, “bala” para “rebuçado”, “listras” para “riscas”, “geladeira” em vez de “frigorífico”, “mingau” em vez de “papa”… E tantos outros exemplos.

Ora, o visionamento desses vídeos por largos períodos de tempo priva as crianças de brincadeiras activas e criativas, pilares necessários ao seu crescimento saudável e equilibrado.

Carlos Neto, especialista na área da motricidade humana, defende que “as crianças mais activas têm mais capacidade de aprendizagem, mais capacidade de concentração. E têm, a médio e a longo prazo, mais capacidade de terem sucesso”. E acrescenta: “enquanto hominídeos temos cinco milhões de anos de história, um ADN que não pode ser esquecido. O corpo veio ao mundo para se mover, para ser ativo e tem de continuar a mexer-se”.

Atendendo a todo este quadro, somos levados a concluir que estarmos sentados em frente da televisão (ou de outro ecrã) não é solução. Afastar as crianças dos ecrãs, no caso da televisão, pode ser uma boa forma de ultrapassarmos o alarmante ranking europeu que nos coloca com a taxa mais alta de sedentarismo da Europa.

Mas não diabolizemos a televisão nem tenhamos uma visão maniqueísta. A televisão e o seu visionamento apresentam vantagens e desvantagens. Existem conteúdos educativos/pedagógicos estimulantes, que podem e devem ser um bom tempo para criar laços em família, para aprendizagem de valores de cidadania, paz e direitos humanos.

Como a definiu Karl Popper, o filósofo do pensamento livre, a televisão não pode ser “ladra do tempo”.

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