Porque reclamamos, cada vez mais, dos serviços públicos e das empresas?

As formas de os consumidores se manifestarem mudaram, emancipando-os, tornando-os mais capazes, o que resulta, cada vez mais, na falta de necessidade de intermediários e mediadores.

A primeira reclamação de que há registo tem mais de quatro mil anos e, por conta disso, já ninguém duvida da sua importância e de como mudam ao longo do tempo as relações de consumo entre marcas e consumidores. Prova disso foram os resultados anuais do Portal da Queixa, que encerrou o ano de 2021 com mais de 170 mil reclamações recebidas, resultando no oitavo ano consecutivo de crescimento.

Então, a que se deve este aumento constante no número de reclamações dos portugueses, ao longo dos últimos anos?

Interessa conhecer as razões por detrás desta alteração de comportamento. Estará o problema do lado das marcas, revelando um decréscimo na qualidade do serviço prestado? Ou será apenas um reflexo da mudança comportamental dos consumidores, na sequência da conjetura pandémica, como a que vivemos atualmente?

Bom, vamos por partes!

Parte 1. O consumidor

Na realidade, nos últimos dez anos, a forma como os clientes e as marcas se relacionam mudou muito, devido à inovação tecnológica, que é um dos fatores protagonistas desta evolução comportamental dos consumidores. No entanto, devemos o mérito desta repentina e massiva digitalização dos portugueses à pandemia, que nos assolou desde março de 2020. A partir desse momento, e porque estávamos todos confinados em casa, deixámos de pensar o mundo sem internet, sem redes sociais e sem plataformas online como o Portal da Queixa, para podermos rapidamente resolver um problema de consumo.

É verdade que plataformas sociais como esta eliminam barreiras no contacto e reduzem o índice de esforço do consumidor, já que, por via delas, o consumidor tem muito mais facilidade em comunicar com qualquer marca das quais é cliente. Tudo isto, num único canal, sem custos para o consumidor e sem ter de preencher formulários infindáveis. Por sua vez, como é um canal onde a exposição pública da marca é muito maior, as empresas tendem a resolver o problema de forma mais célere, o que cria no consumidor a sensação de ter uma experiência muito mais eficiente ao reclamar pela internet, em detrimento dos canais convencionais, que nem sempre estão disponíveis e onde o retorno é muito burocrático e demorado.

Outro aspeto muito importante para esta mudança comportamental está relacionado com a perda de confiança, por parte dos consumidores, nos organismos públicos que tutelam e supervisionam os setores de atividade. Os atuais mecanismos de defesa dos consumidores, nomeadamente o Livro de Reclamações e as associações de consumidores, estão obsoletos, não são eficientes e perderam a sua força como autoridade jurídica e social. Razão pela qual só quase dez anos mais tarde se “inspiraram” no modelo conceptual do Portal da Queixa, para evoluírem as suas ferramentas do analógico para o digital. As formas de os consumidores se manifestarem mudaram, emancipando-os, tornando-os mais capazes, o que resulta, cada vez mais, na falta de necessidade de intermediários e mediadores.

Na era do digital, em vez de comentar com um familiar ou amigo a boa ou má experiência que se teve com uma marca, partilha-se em poucos minutos com 50 mil outros potenciais clientes. Um dos fatores que mais influenciam as opções dos consumidores é a opinião dos seus pares. Segundo um estudo muito recente, sete em cada dez consumidores admitem tomar decisões de compra influenciados pela opinião partilhada por outros consumidores, em plataformas como o Portal da Queixa. Portanto, para quê ter de pagar por mediação ou ter de recorrer à inoperância do regulador e ficar eternamente à espera de uma solução? A reclamação pública é a moeda de troca para chegar à solução, na era da reputação digital.

Parte 2. As marcas

Se referi atrás que uma reclamação não solucionada pode ser um desastre e colocar a marca em maus lençóis – relativamente à sua reputação online –, é muitas vezes a forma como a esta responde que cria a dimensão do prejuízo ou a possibilidade de a reverter numa oportunidade de ganhar novos clientes e fidelizar os atuais.

Em Portugal, o sucesso com o cliente ainda é visto como um processo focado na conversão da venda e na notoriedade da marca, o que deixa, muitas vezes, a experiência do cliente fora deste processo. As marcas tendem a considerar positiva a qualidade do seu serviço ao cliente, se não tiverem muitas reclamações. Vivem da intuição e do bom senso dos seus gestores e assumem como principal preocupação atingir níveis de notoriedade superiores aos da sua concorrência direta, mesmo que para isso tenham de investir em prémios de eleição anual, que servirão apenas para criar narrativas de comunicação narcisistas, que todos os consumidores já entenderam como funcionam.

O controlo da qualidade da experiência do cliente deve ser um processo contínuo de análise, através da auscultação diária ao cliente, em canais isentos e públicos. Os dados recolhidos são autênticas “coordenadas para navegação em alto mar” que permitirão definir a estratégia a médio e longo prazo. Afinal, não há ninguém melhor do que o cliente que passou pela experiência para afirmar se a marca está ou não no bom caminho. Esta é uma forma muito simples e eficaz de transmitir a real perceção dos consumidores às marcas, ajudando-as a caminhar para um serviço cada vez mais focado nas expectativas do cliente e nos seus níveis de satisfação, pois o verdadeiro problema é uma insatisfação que desconhecemos. Aqueles que reclamam são, provavelmente, alguns dos seus mais fiéis clientes. Reclamar é um processo emocional e que dá trabalho, por isso, fazemo-lo quando estamos muito desapontados, mas sobretudo fazemo-lo apenas com marcas que nos são muito importantes e com as quais pretendemos continuar como clientes. É uma segunda oportunidade que nunca deve ser desaproveitada.

A convergência digital está em marcha e já se tornou num caminho sem retorno. O grande desafio das marcas é saber como adequar as suas equipas de atendimento às novas formas de o consumidor se manifestar, pois é na satisfação de um problema que está o início da próxima venda.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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