Afinal o que é a “saúde mental”

Considerar-se que existe uma mente separada do corpo é um conceito fora de tempo, da mesma forma que considerar-se uma “saúde mental” separada de toda a saúde.

Historicamente, a “saúde mental” não é uma disciplina, não é uma área científica. Atualmente, não está muito bem definida, também por isso será tão mal compreendida. A expressão teve início em meados do século XX, apesar de o conceito ser prévio. No início do mesmo século, antes de se falar em “saúde mental”, usava-se a designação “higiene mental” no sentido da identificação de tudo o que poderia ser deletério ao indivíduo e passível de prevenção e correção estrutural. A “saúde mental” nasce como um movimento para proteger as pessoas da doença psiquiátrica e para proteger os afligidos das más condições de acompanhamento e tratamento. A Organização Mundial da Saúde apresenta, também em meados do século XX, uma definição de saúde que se tornou conhecida por muitos e que, sem sustentação científica, reza “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade”. Desta forma se atribuíram dimensões à saúde e, possivelmente, se contribuiu para uma confusão entre um determinado estado e o previamente referido movimento.

O estado de “saúde mental” tem sido alvo das mais diversas particularidades. O uso desta expressão para definir um certo estado é anacrónica, por diversas razões. Mente é um construto humano, uma forma de nomear e descrever o nosso funcionamento cognitivo ou emocional, desde o comportamento até à atenção ou pensamento abstrato. Este funcionamento não existe sem um sistema nervoso que, por sua vez, não sobrevive sem um organismo em funcionamento equilibrado. Assim, é discutível separar um tipo de saúde, leia-se “saúde mental”, por oposição a simplesmente saúde, no geral e para qualquer indivíduo. Considerar-se que existe uma mente separada do corpo é um conceito fora de tempo, da mesma forma que considerar-se uma “saúde mental” separada de toda a saúde.

Os críticos dirão que não se pode considerar esta área como apenas dependente de um conhecimento da biologia humana, descrita pela ciência de circuitos neuronais ou neurotransmissores. Dirão que é sempre necessário incorporar dados provenientes da sociologia ou antropologia, no reconhecimento da cultura e estruturação social, laboral, familiar, entre tantas outras. E dirão bem. Perceba-se que isso também se aplica a uma parte enorme de condições clínicas. As tradições e hábitos de um povo são também causas de doenças e fatores de risco, como hipertensão arterial, colesterol elevado, glicemias altas e tantas outras. A pobreza é outro exemplo de fator causal e de risco. Não é isso que limita a procura de um conhecimento científico para a compreensão da patologia, que só ajudará a uma atuação mais eficiente na prevenção, tratamento e cura.

Ainda sobre “saúde mental” como estado, um outro fenómeno mais recente é a criação de uma zona classificativa, também sem fundamentação científica, em que alguém não tem uma doença psiquiátrica e também não está “mentalmente saudável”. Poder-se-á considerar que haverá fatores de risco, como existem para outras doenças, que deverão ser abordados, também preventivamente. A formulação no sentido de prevenção suportada pela identificação de fatores de risco seria, possivelmente, mais exequível do que abordar sem planeamento esta artificialidade de um indivíduo que se apresenta insuficientemente saudável e que não está enfermo. Uma das consequências da utilização de um estatuto de pessoa com problemas de “saúde mental” é o adiamento do diagnóstico de uma qualquer condição médica ou avaliação de risco para a mesma. Este ato de evitar também poderá contribuir para a manutenção do estigma sobre a psiquiatria.

A “saúde mental”, como movimento, anda há mais de 70 anos a tentar prevenir doenças e a tentar melhorar as condições dos doentes. Tem conseguido uma melhoria gradual, mas ainda há muito por fazer. Os espaços de saúde devem ter as condições para tratar, de formas qualitativa e quantitativa, com meios logísticos e humanos. A prevenção deve ser para toda a saúde e deve começar precocemente e de forma transversal a toda a sociedade, e não em consultórios ou hospitais. É fundamental e deve constituir parte de um ensino, de uma justiça, de uma legislação, de uma política. Dar recursos a estruturas como hospitais ou outras unidades de saúde vai permitir tratar mais e melhor. Não deve ser confundido com o esforço de melhorar uma sociedade para permitir uma profilaxia da doença, psiquiátrica ou outra.

Em consequência da definição histórica acima apresentada, os profissionais de “saúde mental” são aqueles que atuam com conhecimento das melhores práticas para que uma comunidade permaneça ou seja saudável. Aqueles que atuam a diagnosticar e a tratar individualmente têm outra designação, podendo e devendo ter conhecimentos das melhores formas de agir na sociedade para prevenir as doenças e proteger os doentes.

A utilização de linguagem de forma indevida pode levar à confusão, quando não se faz com outros intuitos, como procurar um reconhecimento público, independentemente da proteção dos doentes. Por vezes parece que se anda a passar uma ideia de que se vai investir na “saúde mental”, para que todas as pessoas se sintam melhor, atinjam um estado de plenitude, com a melhor das pontuações na sua dimensão de bem-estar, como se tal fosse o segredo de uma felicidade. Não parece haver dúvidas sobre a necessidade de reformas sociais e do reforço dos meios para prevenir e tratar as doenças psiquiátricas, mas fica a questão sobre o benefício ou prejuízo de se olhar para a “saúde mental” como uma dimensão da subjetividade do indivíduo sobre a sua qualidade de vida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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