Polo negativo

Os pais não desejam que os filhos sofram. E é natural que assim seja, pois a dor dos filhos magoa-nos mais do que o nosso próprio sofrimento.

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"Os pais devem estar atentos — e muito atentos mesmo — para identificarem sinais de sofrimento inquietantes" Jessica Rockowitz/Unsplash

Apesar de os pais não desejarem que os filhos sofram, a vivência de sentimentos considerados “negativos” na infância não só é inevitável como até pode ser, de certa forma, benigna.

Os pais não desejam que os filhos sofram. E é natural que assim seja, pois a dor dos filhos magoa-nos mais do que o nosso próprio sofrimento. No entanto, apesar de não gostarem, os pais não podem impedir os filhos de experienciarem sentimentos como a tristeza, o medo, o desalento, a vulnerabilidade ou a mágoa. Os sentimentos considerados “negativos” são inevitáveis. Por mais que queiram, não há nada que os pais possam fazer para evitar que os filhos, em algum momento das suas vidas, sintam este tipo de emoções.

O que os pais podem fazer é ajudar os seus filhos a reconhecerem e a lidarem com estes sentimentos, apoiando-os enquanto enfrentam as circunstâncias que os causaram. Neste sentido, atrevo-me mesmo a dizer que é positivo que as crianças experienciam sentimentos considerados “negativos” na infância, enquanto ainda comunicam os seus estados de alma aos adultos. A vivência destes sentimentos é uma oportunidade de os mais novos aprenderem a lidar com este tipo de emoções, ainda com a nossa mão por trás, amparados e apoiados. Se não aprenderem na infância, mais tarde, já na adolescência, quando deixam de partilhar as emoções com os adultos, de que ferramentas dispõem os adolescentes para lidarem com os sentimentos “negativos”?

Claro que os pais devem estar atentos — e muito atentos mesmo — para identificarem sinais de sofrimento inquietantes, para poderem perceber qual a sua causa e intervir na solução. Mas não é deste sofrimento inquietante que estamos a falar, mas sim das pequenas grandes tristezas pelas quais todas as crianças, mais tarde ou mais cedo, passam, como os conflitos no recreio da escola ou as zangas com os melhores amigos. No entanto, há pais que se alarmam e intervêm constantemente, procurando evitar toda e qualquer fonte de tristeza aos seus filhos.

Apesar de bem-intencionada, a motivação dos pais para evitarem a vivência de sentimentos “negativos” por parte dos filhos, além de irrealista, assenta numa ideia difundida nos nossos dias, que valoriza a felicidade como objetivo central da vida humana. E, na verdade, quem não quer ser feliz? Mas quem o consegue ser permanentemente? Quem não experiencia, na maior parte do tempo, diversas emoções em simultâneo, algumas delas congruentes e outras tantas nem por isso?

Como escrevem Edgar Cabanas e Eva Illouz no livro A Ditadura da Felicidade, “as emoções são experiências complexas que abrangem uma ampla gama de fenómenos diferentes. (…) Poderia assim dizer-se que não existe nenhum estado ou experiência específico que possa ser designado, sem ambiguidade, por felicidade, nem nenhum estado ou experiência que não seja ao mesmo tempo bom e mau, positivo e negativo, agradável e desagradável, funcional e disfuncional”.

Mais à frente, estes autores vão mais longe ao sublinharem o caráter crucial dos sentimentos “negativos”: “A tirania do positivo leva-nos a ver a tristeza, a desesperança ou a mágoa apenas como pequenos revezes ou estados fugazes da vida que passariam se nos esforçássemos o suficiente”. Neste sentido, vão ao ponto de consideraram o culto da felicidade como uma distração entorpecedora e “não uma cura para o cada vez mais profundo sentimento de vulnerabilidade, impotência e ansiedade”.

Byung-Chul Han, na obra Sociedade do Cansaço chama a atenção para aquilo que denomina como a crescente positivação da sociedade que, na sua ótica, “enfraquece sentimentos como angústia e luto, que radicam numa negatividade, ou seja, são sentimentos negativos”. Como consequência, a sociedade do desempenho ativa e cria estados psíquicos “caraterísticos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade”.

Assim, não podendo saber ao certo o que é a felicidade — já que este conceito varia de pessoa para pessoa, dentro de cada pessoa e também ao longo da nossa vida — poderá ser mais útil ajudarmos as nossas crianças a lidarem com a imensidade de sentimentos que todos albergamos no nosso interior, muitos deles contraditórios e alguns até incoerentes. Importa apoiá-las na vivência e na integração do polo positivo e do polo negativo, de modo a intuírem que, na verdade, muitas vezes os dois polos não passam das duas faces de uma mesma moeda, cara e coroa, alegria e tristeza, confiança e incerteza, tranquilidade e inquietação. E que não existem um sem o outro. Sem experienciarmos o polo negativo, dificilmente integraremos o positivo.


A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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