Pandemia fez aumentar uso de cannabis e diminuir o de ecstasy

As restrições aos movimentos transferiram o consumo de drogas ilícitas para dentro de casa. O de cannabis agravou-se entre os consumidores regulares, que a usaram para relaxar, ficarem pedrados e dormir melhor. Já o ecstasy, conhecido pelo seu efeito eufórico, diminuiu.

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Fecho de locais de diversão nocturna fez baixar consumo de substâncias que provocam euforia Pedro Nunes (arquivo)

A pandemia fez baixar o consumo de drogas ilegais mais associadas a contextos recreativos e à vida nocturna, como o ecstasy. Em contrapartida, o consumo de cannabis aumentou ao longo dos correspondentes confinamentos, sobretudo para “ajudar a relaxar” e a dormir melhor, além de para “ficar pedrado”, segundo o inquérito online que o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) promoveu, entre Março e Abril de 2021, junto de quase 50 mil pessoas com 18 e mais anos de idade, em 30 países (dos quais 21 membros da União Europeia).

Os dados relativos a Portugal, baseados em 4600 consumidores e divulgados no início deste mês, tinham apontado para uma diminuição em cerca de um terço do consumo de cannabis nos jovens portugueses entre os 18 e os 24 anos de idade. Mas esta redução não foi comum aos diferentes grupos etários, segundo João Matias, do OEDT: entre os mais velhos e com hábitos de consumo mais regulares, o recurso à cannabis aumentou, fazendo com que Portugal acompanhe a tendência generalizada de aumento de consumo daquela substância durante o período pandémico.

“Aqueles que já consumiam antes da pandemia, e que tinham um acesso mais facilitado a redes de contactos que lhes garantiam o acesso à substância, aumentaram os seus consumos. Os que consumiam de forma menos regular, sobretudo com amigos e fora de casa, deixaram de consumir ou reduziram”, avança aquele especialista, numa interpretação que coincide com as mudanças reportadas pelos inquiridos quanto aos locais de consumo: com espaços de diversão nocturna fechados e os festivais de música cancelados, estas substâncias passaram a consumir-se dentro de portas em 85% dos casos.

De resto, este aumento do consumo da cannabis surge a par de uma diminuição acentuada das substâncias conhecidas pelos seus efeitos eufóricos e socializadores como o ecstasy. De entre os 48.469 adultos que responderam ao inquérito (e que não constituem amostras representativas da população), 42% referiram ter consumido menos ecstasy e 33% apontaram um decréscimo no uso de cocaína, contra os 32% que apontaram um aumento do consumo de cannabis (herbácea).

A procura de um estado de relaxamento, de “ficar com a moca” e de um sono mais retemperador foram, por esta ordem de importância, as motivações mais frequentemente apontadas para o consumo de cannabis. O tratamento da depressão ou de estados de ansiedade surgem logo a seguir, com quase 40% das respostas. E também aqui Portugal não fugiu à regra, apresentando a mesma proporção de consumidores que apontaram o recurso àquela substância como coadjuvante no tratamento daquelas doenças do foro mental. Este facto não surpreendeu o director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão, para quem a pandemia acentuou esta necessidade de encontrar nas drogas um “alívio para o sofrimento”.

Em termos globais, 93% dos inquiridos declararam terem consumido cannabis nos 12 meses anteriores ao inquérito (ainda assim menos do que os 94% que optaram pelo álcool), 35% ecstasy e outros 35% cocaína e 28% optaram pelas anfetaminas. Do mesmo modo, 20% optaram pelo LSD, 16% por novas substâncias psicoactivas e 13% pela cetamina, um anestésico que produz um estado de transe e alívio da dor. Entre os 3% que reportaram o uso de heroína, mais de um quarto (26%) declarou ter consumido mais esta droga durante o período estudado.

Padrões de consumo deverão normalizar

Mas os padrões de consumo deverão normalizar assim que superada a pandemia. “Na análise às águas residuais em 2021, num período em que tinham sido aliviadas as restrições de movimentos e até de negócio, já vimos um novo aumento quer do consumo de cocaína quer do consumo de ecstasy”, avança João Matias, dizendo-se, preocupado com o eventual agravamento dos consumos problemáticos a requerer tratamento, sobretudo quando sabemos que a toxicidade da cannabis tem vindo a aumentar. “Com toda a carga emocional e o peso do stress e da ansiedade ligados ao confinamento, com impacto na saúde mental, é expectável que os consumos, que se agravaram, se tornem mais problemáticos”, antecipa.

O responsável do OEDT sublinha assim a necessidade de se manterem e até de se reforçarem os instrumentos de monitorização como os inquéritos online aos consumidores e a monitorização das águas residuais. “São instrumentos que nos permitem detectar picos de consumo e o aparecimento de novas substâncias em tempo quase real e que por isso permitem a adaptação atempada dos serviços de tratamento e de redução de danos e riscos associados ao consumo das diferentes substâncias”, enfatiza, adiantando que já se começou a sentir em vários países europeus um aumento da procura de tratamento.

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