Os cidadãos estão prontos para participar. Estarão os políticos prontos para ouvir?

Não há uma fórmula mágica para resolver os desencontros entre cidadãos e instituições europeias, mas a Conferência sobre o Futuro da Europa está a testar uma experiência inédita de democracia deliberativa.

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Plenário da CoFoE Parlamento Europeu/Christian Creutz

“É um momento histórico”, ouve-se em toda a parte quando o tema é a grande experiência democrática da Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE, para os mais próximos), uma iniciativa co-liderada pelas três instituições europeias Parlamento Europeu, Comissão Europeia e Conselho da UE para traçar caminhos e soluções para os problemas complexos que a União enfrenta. A Conferência baseia-se em três pilares, os “três P”: uma plataforma digital multilingue, que reúne ideias e eventos por toda a UE; os painéis de cidadãos, divididos em quatro grandes temas; e o plenário, uma assembleia mista que junta cidadãos, governantes e outros representantes dos Estados-membros europeus.

Nos últimos meses, as atenções estiveram focadas nos painéis de cidadãos, a grande inovação deste processo. Pode esta experiência de democracia deliberativa mudar o rumo da UE? Para os 200 cidadãos que participaram no painel que se debruçou sobre questões de Democracia e Estado de direito, a importância do processo é clara: o caderno de encargos resultante dos encontros deste grupo encerra com a recomendação de que se realizem estas assembleias de cidadãos com regularidade. “Queremos que estes se sintam mais próximos das instituições da UE e que contribuam directamente para a tomada de decisões em estreita colaboração com os políticos, aumentando o sentimento de pertença e a eficácia directa. Além disso, queremos que os partidos políticos e os seus programas eleitorais sejam responsáveis perante os cidadãos”, justificam.

A ideia de juntar cidadãos comuns para dialogar e tomar decisões sobre temas complexos tem-se tornado popular. “Neste momento, os processos deliberativos a nível internacional são mais relevantes do que nunca, num momento em que as sociedades por todo o planeta enfrentam problemas colectivos no campo dos valores, de longo prazo e complexos”, lê-se no relatório da OCDE “Participação cidadã inovadora e novas instituições democráticas: apanhando a onda deliberativa”, publicado em 2020.

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Yves Mathieu, do Missions Publiques Parlamento Europeu

O eurodeputado belga Guy Verhofstadt, um dos membros da comissão partilhada que lidera este processo, explica que a CoFoE “não é um mero exercício de escuta”. “Não estamos a organizar uma conferência para ouvir o que os cidadãos querem. Nós já sabemos isso, temos o Eurobarómetro”, brinca o deputado do Renew, em declarações à margem de um dos painéis de cidadãos, em Estrasburgo. “Esta conferência é única no sentido em que os cidadãos estão a participar activamente no processo de tomada de decisão, ao lado de representantes das democracias nacionais e europeia. Todo o processo que construímos garante que os cidadãos estão permanentemente no centro da tomada de decisão.”

Mas como poderão centenas de pessoas sem conhecimentos específicos formular propostas sobre temas complexos como os que cruzam o futuro da Europa? “Os cidadãos estão prontos, em qualquer lugar do planeta”, assegura Yves Mathieu, fundador da Missions Publiques, uma das quatro agências que promovem este tipo de assembleias de cidadãos e que têm assessorado o secretariado da CoFoE. “Com base na minha experiência de 1200 diálogos em 125 países, os cidadãos estão sempre à altura. Nunca falha”, continua o francês. “Quando criamos o enquadramento certo, temos um tema, convidamos as pessoas a fazer recomendações, dando argumentos, funciona. As pessoas conversam pacificamente e podem discordar pacificamente.”

Em tempos de polarização, Mathieu apresenta estas assembleias como uma ferramenta eficaz para encontrar pontos em comum. “As pessoas dialogam entre si. Esse é o processo. É falar, é ouvir os outros. Se o diálogo não fosse crucial, nós faríamos uma sondagem”, refere, ecoando as palavras de Verhofstadt. “Basear-se em sondagens é considerar as pessoas um mercado, em vez de pessoas inteligentes envolvidas num processo político.”

E como moderar conversas às quais as pessoas chegam com opiniões tão firmes, como as migrações? “Há tantas emoções em relação a este assunto”, reconhece a dinamarquesa Kathrine Collin Hagan, do Danish Board of Technology (DBT), outra das organizações que delinearam este processo. “Quando partilhamos as regras para o diálogo, no início dos painéis, sublinhamos especificamente a importância de usarem uma linguagem apropriada e não criar um ambiente de ódio. O equilíbrio é muito delicado, mas é precisamente isso que torna este processo valioso, que as pessoas tenham perspectivas diferentes.” Jacob Birkenhäger, especialista em deliberação, open government e inovação democrática do IFOK, na Alemanha, concorda: “É bom ter esse tipo de pontos de vista diferentes, juntá-los, guiar essa discussão e conduzir esses conflitos, porque precisam de ser resolvidos.”

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Eurodeputado Guy Verhofstadt e a comissária europeia da democracia e demografia, Dubravka Šuica Mathieu CUGNOT / Parlamento Europeu

Participação

“Não há fórmulas mágicas para o défice democrático na UE”, salientam Alberto Alemanno (HEC Paris) e Kalypso Nicolaïdis (Universidade de Oxford), num dos artigos académicos já publicados sobre as recomendações dos cidadãos na CoFoE. “Nenhuma inovação democrática — e as assembleias de cidadãos não são excepção — dará frutos se não fizer parte de um ecossistema mais amplo a montante, que dê poder aos cidadãos como autores do seu próprio destino.”

Yves Mathieu concorda que o sistema político deve responder de forma adequada ao esforço dos cidadãos neste processo deliberativo. “A pedra angular do sucesso deste processo será a posição dos políticos”, que devem dar lugar não apenas a especialistas, “com que se reúnem todos os dias”, mas a cidadãos. E não apenas ouvir pessoas individualmente: “Não é dar atenção às sondagens, porque isso cria enviesamentos, e também não apenas a grupos de cidadãos organizados. Isto é diferente”, reforça.

E poderá um eventual sucesso deste processo incentivar cidadãos por toda a UE a uma cidadania mais activa? “As pessoas agem se estiverem convencidas de que tem um efeito”, confirma Isabel Menezes, professora catedrática da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. “Na política, como em tudo, o que chamamos de sentido de auto-eficácia é o grande determinante.”

É preciso equilibrar os dispositivos representativos como o voto com dispositivos participativos, sob a pena de haver um afastamento dos cidadãos da política. A própria Constituição portuguesa, aliás, reconhece a importância do “aprofundamento da democracia participativa”.

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Isabel Menezes, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, tem conduzido vários projectos em torno da participação política de jovens

Outras formas de participação, como a adesão a protestos, petições ou campanhas, também devem ser reconhecidas como formas de cidadania activa. A propósito destas formas de participação cívica e política que, muitas vezes, têm uma mobilização mais fácil a nível local , Isabel Menezes realça a importância da “dimensão relacional” para o envolvimento político, referindo uma ideia de Hannah Arendt: “Política é o que acontece na relação entre as pessoas: é quando as pessoas têm de negociar diferenças que a política acontece”, diz a investigadora, que tem conduzido vários projectos em torno da participação cívica e política de jovens, incluindo no âmbito da cidadania europeia.

Será a UE demasiado distante para suscitar essa dimensão relacional? “A Europa assemelha-se demasiado a um objecto, um conjunto de instituições organizadas em blocos sólidos, mas é difícil mobilizar pessoas em torno de objectos”, escreve José Tavares no seu ensaio A Europa não é um país estrangeiro, publicado em 2019 pela FFMS. Perguntamos a Isabel Menezes se “uma Europa sem amor pode bem ser impossível”, como refere o economista. A investigadora responde com esperança: “Falta um discurso inspirador pela esperança, mas pela esperança de que é possível fazer coisas importantes”, afirma, dando o exemplo dos jovens que saem às ruas para reclamar medidas contra a emergência climática. “Se [a dimensão emocional] não está lá pelo lado da esperança, está pelo lado do medo.”

E por cá?

Andando como observador entre as salas do Parlamento Europeu onde os participantes se dividem em grupos mais pequenos, de 10 a 15 pessoas, encontramos Giovanni Allegretti, italiano radicado em Coimbra, onde é investigador do Centro de Estudos Sociais (CES). Está neste momento a preparar um projecto europeu onde a sua equipa irá organizar onze assembleias deste género em seis países diferentes, concentrando-se sobre o Pacto Ecológico Europeu​.

Questionado sobre as vantagens deste tipo de mecanismos para a participação, retoma a ideia de auto-eficácia: “As pessoas dizem que gastam tempo e energias e depois não muda nada, porque a política não escuta. Os processos de participação são imaginados como processos para levantar a voz, para fazer pressão, e os processos que funcionam melhor são aqueles que dão resultados muito visíveis.”

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Giovanni Allegretti, investigador do Centro de Estudos Sociais, Coimbra Parlamento Europeu

Respondendo ao entusiasmo com que muitos participantes da CoFoE falam do processo, poder-se-ia fazer isto mais vezes em Portugal? A experiência mais próxima destes processos deliberativos tem sido o Orçamento Participativo, que tem tido sucesso a nível autárquico, mas pouco mais. Existem algumas dúvidas relacionadas com a protecção de dados, que dificulta o sorteio dos cidadãos. Além disso, estudos noutros países sobre estas assembleias identificam um problema: muitas das pessoas que estão fora desses eventos afirmam não se sentir representadas.

Contudo, com as “experiências de grande sucesso como a escocesa e irlandesa” e a chegada a um patamar europeu, Portugal poderá estar pronto para aplicar pelo menos um “processo híbrido”, como acontece em países como Alemanha e Islândia, conjugando diálogos entre grupos pequenos e momentos de abertura, onde mais pessoas podem dar sugestões com base nos resultados do processo deliberativo.

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Este artigo faz parte do projecto A Europa que Queremos, apoiado pela União Europeia.

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