Todos os burros vão para o céu, mas alguns sortudos vão para Miranda do Douro

A Fugas foi visitar a afilhada Dulcineia e passou o dia na AEPGA, dedicada à “preservação e dignificação” do Burro de Miranda. Nascem cada vez mais burrancos. E cuida-se de todos os burros velhinhos.

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Cláudia Costa: "Se a associação não existisse, esta raça já estava extinta” Nelson Garrido
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Cavalo
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De volta da burra corpulenta estão três veterinários de galochas calçadas e equipados como se estivessem de partida para uma missão espeleológica. De frontal aceso na testa, Daniel Bacellar e a italiana Agnese Santi já colocaram o abre-bocas na Castanha e escacharam a peça metálica para poderem enfiar as mãos na boca do animal sem correrem riscos. Durante as próximas longas horas, o coberto no quintal da ti Iria, na aldeia de Paradela, nevoeiro frio cerrado, será o poiso dos veterinários que prestam apoio itinerante aos burros da região — e esta é apenas uma das missões da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA) que se funde com os restantes eixos deste grupo: a promoção do bem-estar animal, da raça asinina em Miranda, do ambiente, da cultura e da educação, coisas que por aqui são já tão palpáveis como a pelagem comprida e grossa de cor castanha escura e as orelhas grandes e dóceis destes animais.

“Dizemos ao dono ‘meta a mão. Está a ver, o burro tem os dentes muito afiados e isso provoca dor'”, explica à Fugas Cláudia Costa, muito mais do que gestora do Livro Genealógico da Raça Asinina de Miranda, lembrando que os dentes dos burros, como os dos equídeos no geral, crescem toda a vida. “Estão sempre a crescer, não param de crescer. Com 15, 20 anos, um burro tem os dentes muito grandes. E o movimento de mastigação é circular e por isso os 44 dentes dos burros estão sempre a afiar-se uns aos outros o que provoca feridas e até ulceras”. Quando a AEPGA começou em 2001, as pessoas “não eram muito sensíveis ao bem-estar” destes animais, em vias de extinção. “Não tratavam delas próprias, quanto mais dos animais”, recorda Cláudia, militante da AEPGA, hoje com quatro veterinários a trabalhar a tempo inteiro — e mais o Daniel, que decidiu dedicar-se à dentição dos animais. “Como é que vamos dizer a um criador que tinha que tratar dos dentes dos burros quando a pessoa não tinha dentes sequer?! ‘Não vou ao dentista e vou agora pagar para o burro arranjar os dentes...’”.

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Roca, dois meses de idade. Nelson Garrido

É através de acções de sensibilização como esta, de apoio veterinário itinerante e do resgate de animais negligenciados que a AEPGA cumpre um objectivo duplo de manter a população de burros saudável e de auxiliar os seus criadores, geralmente pessoas de idade avançada, no cuidado dos seus animais. “Os burros dão muito trabalho”, comenta Iria Rodrigues, que já chegou a ter três burras, Morena, Antonieta e Primavera. “O meu marido já não pode e eu... pouco”.

De vez em quando, ao fundo, entre a bruma espessa, ouve-se um zurro, seguido de outro. “Olha como eles cantam p'raí...” Iria conhece todos os burros da freguesia. “O senhor Belmiro tem três, o senhor Artur, dois, os vizinhos mais dois, faz oito, 12, 13, o senhor Domingos, a dona Beatriz, a dona Rosa, 20, 21, o Diamantino, 23, a que nunca os tira da loja e o senhor Guilherme também tem uma burra e uma burranca... são à vontade uns 30 burros. Trabalhava-se muito com eles.”

Provavelmente já todos os donos conhecem os sintomas: O burro baba-se muito enquanto come, deixa cair a comida e perde peso muito de repente. “Ou deixa de comer. Quer dizer que não está a triturar bem os alimentos e que tem dores. E ficam tristes com as orelhas para baixo. Usam a linguagem corporal para mostrar que estão mal.” O veterinário enfia a mão na boca do animal e passa-a nos dentes todos, identificando os afiados antes de os limar com uma ferramenta eléctrica. “A partir do momento em que se faz isso, é automática a melhoria. É imediata e é preciso que os criadores percebam isso.” Um aparo simples dos dentes custa 25 euros. “Cobramos menos para nos chamarem mais vezes. E muitas vezes os criadores não querem pagar isso.”

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Na fila para o dentista está Elvira Preto, que subiu a rua e estacionou à porta, a Preta e a Morena, 13 e 23 anos, respectivamente. “Os burros lavravam as vinhas e a horta, lavravam tudo. Agora os tractores fazem tudo, semeiam e arrancam as batatas, fazem tudo”. Agora, as burras são acarinhadas. Algumas são tratadas como animais de estimação. “A esta [Morena] só lhe falta falar. Esta [Preta]... tadita... na Primavera esteve mal, mas arribou. Custa-me tanto... Não gosto de ver morrer os animais. Antes estarem bem os animais do que eu”, suspira Elvira, com uma “netinha de três anos que anda sempre de volta das burras. Coça-as, beija-as...”

Mais acima, José Ildefonso faz companhia às suas burras, mãe, filha e a neta Roca, de dois meses de idade, a única com liberdade total para brincar pela estrada principal da aldeia. “Já começou a comer erva. Aqui há muitos burros. Eu só uso de vez em quando para pôr umas batatas. Fica melhor a terra. Não se pisa tanto como com o tractor. Mas a vinha já a lavramos com os tractores”. Lá dentro, no “centro de saúde” em que se transformou o terreno de Iria, entre cáries, coroas fracturadas e um pau atravessado na boca de um burro, parte da equipa de veterinários está a colocar o chip de identificação no Ronaldo, filho da Castanha que completa dois meses no dia 26 de Dezembro. Em 2005, a AEPGA começou o Livro Genealógico da Raça Asinina de Miranda (LGRAM) — pelo qual é até hoje a entidade responsável, zelando pelo controlo e o fomento de animais de raça em linha pura, pelo progresso zootécnico da raça e pela promoção e expansão da raça através da difusão dos reprodutores seleccionados — pela letra A. 2020 foi a letra Q (de Quinoa, Quebra Nozes, Quartzo, Quimera...) e 2021 tem sido o R (de Rosmaninho, Relíquia, Roca, Ronaldo...). “Venha de lá 2022”, sorri Zélia Cruz entusiasmada com o leque de possibilidades do novo ano e da nova letra e enquanto tira notas de todos os “pacientes”.

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Na fila para o dentista estão os burros de Elvira Preto e de José Ildefonso Nelson Garrido

“A salvaguarda do património genético foi assegurada pela implementação de um programa de reprodução, que permite salvar a raça da sua eminente extinção”, sublinha Cláudia Costa, autora do trabalho fotográfico Missão Asinina, com registo documental dos muitos projectos da AEPGA relacionados com a gestão do território e conservação de habitats prioritários, como os lameiros, e de um trabalho em rede com escolas e outras associações que é difundido a partir dos três centros que a associação gere: o Centro de Valorização do Burro de Miranda (em Atenor, Mirando do Douro), o Centro de Acolhimento do Burro (em Pena Branca, Miranda do Douro) e o Centro de Actividades Lúdico Pedagógicas (em São Joanico, Vimioso).

Aos poucos, o nevoeiro vai correndo pela raia e destapando as placas em mirandês e os pombais em forma de ferradura abandonados. “Era apaixonada por burros, mas nunca imaginei ter um”, conta Cláudia. Um dia ofereceram-lhe um burro (o animal estava em Porto de Mós). “Eu não entendia nada, nem sabia o que comiam”. Foi para o Google investigar, encontrou a associação e tornou-se sócia à distância. “Um ano depois de ter o burro fiquei desempregada e pensei que tinha tempo para ir a Miranda fazer uma semana de voluntariado. Ao fim de uma semana quis conhecer mais e mais. Uma semana era pouco para aprender tanta coisa.” Foi voluntária durante um mês antes de voltar para a capital, para a sua vida, perspectiva de “escritório das 9h às 18h”. Mas a AEPGA contratou-a. Seis meses depois, levou para perto de si o seu burro, o Alfredo, agora com doze anos e meio, um dos cerca de cinquenta burros de Miranda que passeiam entre os 14 hectares de lameiros e currais do Centro de Valorização. “Não é um burro grande, mas é um grande burro”, diz Cláudia, familiarizada com teares e gaitas de foles e com sotaque entranhado. “Já são muitos anos. Já sou mais mirandesa. Para a minha mãe, sair da aldeia para a cidade é que era”.

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Os burros de Miranda podem viver entre 25/30 anos. Se forem muito bem tratados, boa alimentação e, como as pessoas, com boa qualidade de vida, podem chegar aos 35. “Nós acreditamos que os burros que estão ao nosso cuidado possam viver mais tempo porque nunca trabalharam e têm uma vida muito boa”, diz Cláudia, que automaticamente diz o nome da fêmea reprodutora quando ouve o nome de cada burranco — e claro que sabe o ano de nascimento do burro mal ouve o seu nome.

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Manuel Campião: "Se não tens uns sapatos bons, não caminhas" Nelson Garrido

Manuel Campião, o ferrador da equipa, também já pousou a grosa, preparando-se para a pausa de almoço. “Se não tens uns sapatos bons, não caminhas”, diz o angolano, que passou a manhã a fazer aparos correctivos dos cascos dos burros — os cascos dos que estão mais parados têm tendência a crescer mais. “Avaliamos, tiramos as pedras, os paus e as infecções. São ou já foram animais de trabalho”, lembra. “A ti Iria, por exemplo, montava os burros”, atira. “E ainda monto!”, responde a proprietária. Campião, pai transmontano, mãe angolana, também chegou à associação (há uns 17 anos) como voluntário e também foi ficando. Dá apoio aos criadores duas ou três vezes por semana e trabalha em permanência “com os velhotes” no Centro de Acolhimento do Burro, o lar de terceira idade que recebe todas as raças com todo o tipo de histórias e de mazelas. “Cada um tem a sua forma de estar e o seu carácter, educações diferentes, diferentes rotinas de trabalho e diferentes traumas”. Quando chegam a Pena Branca, resgatados de diferentes zonas do país (e até de Espanha, é feita uma triagem e ajustado o tratamento a cada caso.

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Daniela Andrade: "É uma missão muito bonita a deste centro." Nelson Garrido

Na aldeia sem crianças — a escola primária foi cedida à AEPGA —, já há mais burros do que pessoas. “Neste momento são cerca de 20 burros”, confirma Daniela Andrade, veterinária que chegou pela primeira vez em 2010 como voluntária a meio do curso. Os burros são considerados de terceira idade a partir dos 20 anos. “Muitas vezes os donos já não têm idade nem saúde para cuidar dos animais, mas o burro até está bem. Noutras vezes, é o burro que já está muito doente, apesar de os donos ainda terem saúde para cuidar deles. Acolhemos esses animais”, explica Daniela.

A AEPGA não faz negócio com estes burros. “Não compramos nem vendemos. Tentamos ficar com eles e dar-lhes um fim de vida mais digno. É um lar de repouso. Não fazemos distinção de raças, acolhemos qualquer burro que precise de ajuda, branco, cinzento, castanho, às manchas.” Eles circulam lentamente pelos prados e lameiros, alguns com mantas pelo dorso. “São cuidados paliativos. No Inverno faz muito frio e os burros mais frágeis e magrinhos usam um cobrejão, um cobertor, uma mantinha de flanela por dentro e impermeável por fora que usam todos os dias. Têm uma alimentação adequada porque muitos já foram perdendo os dentes e têm muitas dificuldades em mastigar. Fazemos umas papinhas e uma ração própria. Alguns têm que tomar anti-inflamatórios para as dores, burros que têm artroses e artrites, problemas de ossos causados pelo trabalho e próprios da idade”, enumera.

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O lar de terceira idade em Pena Branca Nelson Garrido

A AEPGA já foi ao Alentejo buscar um burro. “Muitas vezes são os netos e os filhos das pessoas que nos contactam a pedir ajuda”, sublinha Daniela, interrompida pelo Papa-Figos, “que não era idoso quando cá chegou”. “Ele gosta muito de figos e o dono deixou cá um saco deles quando o entregou aos nossos cuidados. Mudamos os nomes dos burros quando chegam ao lar ou seriam todos Castanho ou Moreno”.

A Águia é cega de um olho, a Silva tem os dentes tortos, a Macedinha sofre de laminites. Na maioria dos casos, é prescrito “cuidado e conforto”. “Estes burros não ficam muito tempo connosco. Como já têm muita idade e problemas de saúde acabam por morrer com alguma frequência. Damos-lhes um fim de vida condigno. Eles têm que ter para onde ir. É uma missão muito bonita a deste centro.”

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Perspectiva do Centro de Valorização do Burro de Miranda, em Atenor Nelson Garrido

Cláudia Costa e os restantes militantes da AEPGA que se apaixonaram pela missão continuam a “partir pedra”, candidaturas atrás de candidaturas a projectos de apoio, um novelo bem dobado de ideias que vão transformando a paisagem (TerRa - conhecer o território através das raças autóctones), cursos (encontros de ferradores e workshops de dentisteria), passeios (11 Burros, 11 Destinos), visitas de estudo e muita pedagogia. “Não há jovens criadores”, lamenta Cláudia. “E os criadores já têm uma certa idade. A tendência é o declínio. Se a associação não existisse, esta raça já estava extinta”.

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