O amor é assim

Makas de uma angolana 7 Os momentos para amar são todos os minutos, sem nenhuma hesitação, porque se não amarmos o tempo encarregar-se-á de transformar as memórias em amarguras.

O significado do amor, esse químico da vida que se revela em momentos que podem durar instantes ou perpetuar-se para sempre? Havendo tantas formas de expressar o amor, tantas são as vezes que nos inibimos de o fazer, deixando por dizer, por exprimir, por amar. E o que incomoda é que amar é fácil, darmos o melhor de nós custa sempre zero, abrirmos as portas e as janelas para deixar entrar o outro, inteiro, com as coisas boas e as coisas más, é tão fácil como soltar uma gargalhada sempre que Ricardo Araújo Pereira diz “ai”.

Essa facilidade do amor encarrega-se de nós nas mais diferentes situações, nos mais inacreditáveis contextos. Aquele amor entre mãe e filha que cresce naturalmente com o tempo, ou que acontece ao primeiro minuto, que resiste às fases da vida e aos anos, aos tempos de malandragem na escola e aos momentos de tensão que se seguem antes de escolher um curso. O amor que mistura dois em um nos momentos de frustração e junta a unha à carne na hora da insatisfação porque “ela estudou tanto e agora não tem emprego” para depois brindar às glórias de que “está bem, este ano foi promovida, já recebe mais do que eu”. E vai entre o rebentar das ondas na areia e o salto entre as marés mais altas na praia, andando de amar em amar, crescendo, compreendendo, respeitando e agradecendo por todas as horríveis discussões mais os natais com pinhões estragados. Mesmo com tudo isto, ainda que por tudo isto, perguntem aos pais se foi difícil amar. A resposta talvez seja muito parecida à legenda antes do “Fim”: “amámos desde o primeiro dia”.

Depois há o outro lado do amor, o amor deles, dos filhos a aprenderem a amar até ao último minuto, descobrindo em cada minuto a fórmula do cuidar, crescendo num amor que já não é o da criança que corre para os braços da mãe e entre um beijo molhado e um abraço apertado segreda para que o mundo oiça “mamã, estás tão bonita!”. Na pele de filhos, o tempo desafia-nos a amar de diferentes formas, quer fechando-nos no quarto nos típicos amuos da puberdade, quer indo àquela consulta de braço dado, quer olhando as primeiras rugas na testa de forma discreta, quer escondendo-lhes os primeiros cabelos brancos debaixo da franja, mas intuitivamente aceitando e crescendo com a certeza de que, por fora, os que amamos já não são mais os mesmos, mas por dentro, o que sentimos é avassaladoramente maior do que o que sentíamos nos verões da adolescência, a jogar à bola debaixo do sol. Agora é preciso estarmos atentos à forma como pegam na faca, endireitar o guardanapo, limpar-lhes ligeiramente a boca, fazer a sopa quente, colocar o que ficou esquecido na mesa, respirar fundo, ligar ao vizinho para ir lá acima ver se está tudo bem, perceber que é preciso inverter papéis, parar, chorar, voltar a respirar fundo, pensar que este era o pior momento e perceber que não há nem piores nem melhores momentos. Os momentos para amar são todos os minutos, sem nenhuma hesitação, porque se não amarmos o tempo encarregar-se-á de transformar as memórias em amarguras.

Se há forma mais bela de amar é a do primeiro amor, o da ingenuidade, dos tempos de criança a brincar no recreio, do envelope encontrada na lancheira, escrito a tinta preta em papel vermelho “Fica boa depressa. Gosto muito de ti. Vê bem esta carta.” Aquele amor escondido, que só a Chica soube e que surgiu sorrateiro na festa de anos em que todas as meninas e os meninos do colégio foram. Aquele amor que chamava na bainha do vestido azul e branco, numa e noutra roda, para depois correr jardim adentro e só parar no ouvido da Chica, entre sorrisos cúmplices, indo atrás do puxão da melhor amiga “agora não olhes para lá, vamos jogar à macaca”. Uma ou outra vez, terá sido quase sempre mais ao menos assim, esse primeiro amor quase sempre com o mesmo fim: um tímido sorriso nos lábios, dois olhos a correr em direção ao chão e um segredo bem guardado.

Depois vem o amor da adolescência, o sofrido amor da adolescência, que faz verter lágrimas, quebrar corações, planear estratégias, ficar horas fechada no quarto com a melhor amiga a arrancar os pelos ao urso, forrar dossiers com os cartazes da Bravo!, escolher as calças daquela marca, arrancar a ferros os ténis da outra, calcular com semanas de antecedência o lugar a ficar no autocarro durante a visita de estudo, decorar as mesmas músicas, contar as cadeiras para ter a certeza de que ficamos juntos no concerto, saber de cor as letras, descer a rua lado a lado na primeira manifestação, emprestar os apontamentos, ligar no domingo para saber até que página ficou estudado, rever a matéria cinco minutos antes do segundo toque, falar por sinais, tirar fotografias em grupo e guardá-las entre as folhas do diário, ouvir a mesma música, cantar a mesma canção, ser convidada para ir à casa dos pais no fim-de-semana, dar o primeiro beijo, guardar a t-shirt do Hard Rock comprada na viagem de final de ano a Amesterdão, estragar tudo por causa da miúda do Pavilhão C, deixar de lhe falar quando aparece a menstruação, inscrever-se na natação, tirar o cartão de sócia do Benfica, ir ao Estádio da Luz e terminar o dia com um perdão.

No meio há o amor por aquele avô dos carrinhos de choque, pela avó do bolo de laranja, pelo colo da tia mais velha que nos emprestava os brincos, pela prima com quem passávamos as férias grandes e os verões na praia, pelo primo que foi connosco ver a primeira casa, pelo tio que nos engrossava a mesada às escondidas da mãe, pela outra avó que nos deixou o livro com a receita de pastéis de bacalhau e aquele avô que dizia que vinha, mas que nunca chegava, por aquele namorado da mãe que nos comprava com bons presentes, pelo pai que se perdeu mas não esqueceu, pela porteira que acendia a luz sempre que nos via chegar, pelo giraço do patrão, pelo cão da vizinha do segundo andar, pelo PT do ginásio, pelo tipo com quem fomos para a cama três vezes e encontramos passado dez anos de chinelos no supermercado.

O amor é assim, há aquelas que se casam e há aquelas que não. Sem sobreviver ao choque do casamento do melhor amigo, vão de boda em boda a tentarem passar despercebidas na hora de receber o bouquet. O truque é ficar na ponta mais distante da sala e depois largar um “apanhaste, que bom!” a pensar que o pior mesmo vai ser quando chegar o divórcio ou não tivesse ele fama de garanhão. Já as outras, as casadas, ainda não disseram o sim e já estão num outro patamar chamado matrimónio, agarradas às listas de casamento, aos formatos dos convites, a dar nomes às mesas, a distribuir brindes ao estilo meias brancas da avó em dia de Natal, a zangarem-se com a mãe, a chorarem no ombro do pai, a ligarem-te no dia anterior para ires ver o vestido, a deixarem-te em lágrimas e a caírem em lágrimas em frente ao espelho que até já antecipa o “amiga, estás tão bonita” a que quase sempre se segue um entre lágrimas “gostas mesmo?”.

O amor é estupidamente assim, dá por nós sozinhas a descer a avenida, a salgar de lágrimas a calçada por lavar, a pensar porque é que tinha de terminar assim, a apagar o número do telefone dele do telemóvel e depois a ir recuperá-lo numa antiga agenda que ficou do ano em que o conhecemos, a pensar que agora é que nunca mais, paradas em frente à janela a tomarmos decisões sozinhas, a dormir sem o telemóvel na cabeceira, a evitar falar nisso na esplanada, a acordar com a cabeça a arder, a deitar os CD’s fora, a rasgar os bilhetes para o Coliseu, a chorar numa stand up comedy, a dormir com o amigo gay, a devorar as séries que ficaram por ver, a rever o Pretty Woman, a pensar que a sorte só saiu à cabra da Cinderela.

Feliz Natal!

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