Uma visão alternativa das festas de fim de ano

A troca de presentes não é, na sua essência, isso mesmo – uma extensão de partilhas de identidades que se consubstancializam em coisas compradas ou manualmente construídas dadas a terceiros? Porque desprezamos tanto o objecto físico quando dele dependemos para viver e sobreviver?

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Erwan Hesry/Unsplash

Esta é a minha época favorita: a quadra natalícia. A combinação do frio paisagístico com o quente da comida, a reciprocidade do dar de si e do receber de outrem, as músicas, as cores, as pessoas e os acontecimentos. É andar um ano todo a esperar os quatro dias relativos ao Natal e ao Ano Novo (sim, porque para mim é impossível e impensável destrinçar estas duas comemorações, de tão simbolicamente irmãs que são desde sempre). E, como não poderia deixar de ser, assaltam-se(-me) as habituais reflexões pessoais e sociais acerca dos nossos comportamentos e dos processos e estruturas que regem o modo de vida, neste caso, português, marcado essencialmente por valores ocidentais. O presente texto tem como intenção elaborar um apanhado das principais interrogações, habitualmente expressas em dicotomias, que temos nesta fase de despedida do ano civil – mas almeja igualmente trazer um olhar um pouco diferente na discussão das mesmas:

Consumismo vs amor, carinho, espiritualidade

Uma das grandes oposições que se costuma fazer neste período é a da superficialidade do consumo e do consumismo “contra” a afectividade, o amor e o espiritual que o ser humano deve procurar e fomentar. A primeira dimensão, claro está, é efémera, pouco profunda e símbolo de uma sociedade com as prioridades trocadas, em que o objecto suplanta o valor supostamente indivisível da pessoa; já o segundo é o elixir para todos os males, a cura de todas as doenças, que deve ser propalada como panaceia face a um materialismo capitalista desenfreado. Pergunto-me, no entanto, se não é possível obtermos carinho colectivo também a partir de uma partilha material.

A troca de presentes não é, na sua essência, isso mesmo – uma extensão de partilhas de identidades que se consubstancializam em coisas compradas ou manualmente construídas dadas a terceiros? Porque desprezamos tanto o objecto físico quando dele dependemos para viver e sobreviver? Não será mais benéfico que consigamos reaprender a nossa relação com esse objecto através, por exemplo, da redução da quantia que estamos a pensar gastar em compras, da reutilização de materiais para a composição de presentes com o cunho pessoal ou da aquisição de produtos com elementos recicláveis ou, simplesmente, do encarar as prendas como momentos em que a coisa permite que as pessoas estejam juntas? Para quem defende o existencialismo, há que perceber que a existência precede a essência – ou seja, o material permite, no debate que aqui trago, o humano.

Resoluções vs acções

Outra dicotomia que enaltecemos quando pensamos no fim do ano é o das palavras versus os actos. Ou, melhor, das resoluções que planeamos aquando das 12 badaladas “contra” as acções que se concretizam “a sério”. Os seres humanos mais pragmáticos, portanto, que estão sempre em busca daquilo que é mais prático e concretizável, costumam advogar uma máxima: as acções não se anunciam, elas fazem-se e ponto. Isto é, quando se pretende realizar alguma coisa não se deve dizer que a pretendemos fazer, mas antes mexermo-nos para que ela se torne num resultado visível. Nisto, esquece-se da velha teoria, daquilo que permite que a prática não caia num vazio de significado. De que nos adianta uma acção sem enquadramento e sem objectivos? Que conseguimos com concretizações que trazem consequências negativas inesperadas por falta de planeamento? Uma vez mais, porquê diabolizar o teórico ou o abstracto em prol da acção, ao invés de os articular para que possamos agir e não reagir? Nas próximas 12 uvas passas (para quem cumpre esta tradição), pensemos não só no que queremos atingir como também nos passos para efectivar os nossos sonhos.

Tudo muda vs tudo fica na mesma

Para terminar, diria que uma terceira ambivalência que identifico nestes tempos passa pela defesa, por parte de uns, de que um novo ano é uma oportunidade para uma nova vida, para uma verdadeira revolução, e, segundo outros, de que o dia 31 de Dezembro de 200X não é mais do que o dia anterior a 1 de Janeiro de 200Y. Bem vistas as coisas, os segundos têm razão: as 24 horas do último dia de um ano passam exactamente da mesma forma que as horas de qualquer outro dia. O começo de um novo ano não é mais do que uma representação que construímos a partir da forma como socialmente definimos a passagem do tempo. Ainda assim, os rituais são compostos de símbolos e de expectativas e não é por acaso que para nós o desconhecido é uma fonte de medo e ao mesmo tempo de esperança. Pensar na passagem de ano como só mais um dia que começa e acaba está longe de ser a realidade mental da maior parte das pessoas, dado que, no fundo, todas e todos nós alimentamos uma fantasia, uma fé ou uma crença de que, a partir dali, inicia-se um novo período de maiores vigor e felicidade. Tudo passa, então, pelo equilíbrio entre o antigo e o hodierno, ou seja, pela ideia de que a mudança é feita de bocadinhos da continuidade.

Desejo um excelente Natal e um magnífico Ano Novo, com todo o material e o espiritual e todas as resoluções e acções e novidades e mesmidades que merecemos.

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