Cinema em sala e no museu

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Parisa Taghizadeh

Talvez que as notícias do twist oportunista d’A Noite Passada em Soho tenham sido exageradas. Na verdade, tudo no filme parece apontar para aí, um surfar do revanchismo contemporâneo: o sexo masculino como um ente mau, abusivo, tirânico. A banalidade do mal já era; eis a masculinidade do mal. Surgem como visões, profecias: zombies sem olhos, pedaços de braços erguidos, mãos que ameaçam cravar-se na carne das mulheres, devorá-la, sorvê-la, chupá-la até aos ossos (já víramos isto em Repulsa, o que só renova a necessidade de prudência nas interpretações actualistas)… No final do dia — e o filme presta-se de facto a esse ridículo —, o único homem “bom” (o único homem não-violador/ameaçador) é um rapaz… negro. Estamos conversados. Estamos? Paralelamente, um outro twist se desenha, discreto, menos histérico, ironicamente conflituando com o primeiro. À medida que Eloise — a que Thomasin McKenzie se entrega desmesuradamente, tal a forma como encarna esse paradoxal “medo de adormecer” e os efeitos da privação de sono (as variações térmicas no corpo, os tremores, olhos esgazeados e suores repentinos, a fome anulada por um peito tomado por um êxtase de ansiedade, coisas de uma visceralidade que quase se transmite ao espectador) — se aproxima da verdadeira identidade da sua senhoria, vai juntando 1+1 e caminhando para a conclusão… Ou pensa que vai. Tudo lhe sugere que o velho que frequenta o pub onde trabalha é o ex-agente musical que, numa outra vida, terá usado e abusado de miúdas aspirantes a grande estrela da Swinging London. Mimetizando a tribuna das redes sociais, o filme monta as peças (as aparências) do puzzle, i.é, da “acusação”, impelindo protagonista e espectador a ditarem a sentença: sim, encontrámos o nosso culpado, decrete-se o ergástulo; podemos agora fechar as persianas das nossas casas, fez-se justiça. Beyond a Reasonable Doubt: o título do filme de um dos grandes humanistas (e, et por cause?, pessimistas) do cinema, que um dia teve de apertar a mão a Goebbels antes de rodar nos calcanhares rumo aos EUA, dá o mote, porém, para a reserva ética resgatada pelo filme de Edgar Wright. Na verdade, prova alguma existira da convicção que a protagonista formara; na verdade, este não é o culpado que desejávamos anunciar (“partilhar”…). O estranho velhote que víramos de olho em Eloise no pub e nas ruas esconsas de Londres é, afinal, um ex-polícia amargurado que passou a vida à caça de proxenetas e abusadores. De repente, a sin city a tresandar a estupro volve-se no lugar em que uma miúda da província tem a protecção e o aconchego silenciosos de um homem conhecedor dos cantos da casa.

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