Cidrão, o citrino quase esquecido que vem no Natal para o bolo-rei

Já existiu em grande quantidade em Portugal, mas hoje o fruto da cidreira tornou-se raro. Citrino sem sumo, exótico e mítico, sobrevive associado a algumas tradições de Natal. No Minho há quem trabalhe para o fazer renascer, cristalizado ou em cidrada.

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Um cidrão no jardim da Casa do Rio, em Barcelinhos Nelson Garrido

Escondido entre a folhagem no pequeno jardim das traseiras da Casa do Rio, em Barcelinhos, o fruto parece um limão gigante. Quando afastamos as folhas, surge em todo o seu esplendor. É enorme, bonito, amarelo, e, quando raspamos a unha na casca, liberta um aroma cítrico perfumado e intenso. Aqui está um cidrão, apresenta-o Anabela Ramos, técnica superior da Direcção Regional de Cultura do Norte no Mosteiro de Tibães e investigadora na área da alimentação, ligada também ao projecto ReSEED, e que se dedicou a estudar e a tentar recuperar este fruto praticamente desaparecido em Portugal.

Houve tempos em que o cidrão estava por todo o lado (até Camões se refere a ele n’Os Lusíadas, descrevendo “a cidreira com os pesos amarelos”), nas árvores, primeiro, e depois numa série de receitas nas quais era aproveitado de inúmeras formas, da mais comum cidrada até ao fruto cristalizado. Foi precisamente nesta última forma que mais tempo sobreviveu e ainda hoje é possível (embora raro) cruzarmo-nos com ele em alguns bolos-rei, sobretudo na região do Minho, onde nos encontramos.

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A investigadora Anabela Ramos com a cidreira que foi enxertada numa laranjeira no Mosteiro de Tibães Nelson Garrido

Por acaso, Rosário Norton, a proprietária da Casa do Rio, ainda tem alguns frutos na sua árvore, mas, diz Anabela Ramos, a maior parte dos que existem por aqui foram colhidos há já uns dois meses, quando ainda estavam verdes, porque é a altura certa para os cristalizar e é para isso que há mais procura. Os que resistem até Dezembro, como estes, são agora colhidos e usados para fazer cidrada.

Se recuarmos até ao século XVIII, é fácil imaginarmo-nos a entrar na cozinha de um mosteiro, como o de Tibães, por exemplo, ou numa qualquer casa senhorial, e encontrar alguém a fazer cidrada. Mas hoje, para ver uma cena semelhante, temos que ir até Amares, onde Arminda Costa tem a sua empresa de fabrico artesanal de doces, a Quelha Branca. Guardou uns cidrões (originalmente, o fruto, que nasce na árvore chamada cidreira, era conhecido como cidra, mas com o tempo passou-se a chamar-lhe cidrão) e está a prepará-los para a cidrada.

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Arminda Costa mostra a cidrada que faz, em versão doce e tipo marmelada Nelson Garrido

Os frutos grandes, semelhantes aos que tínhamos visto na árvore (da variedade Diamante, sendo que existem outras como a ainda mais exótica Mão-de-Buda), são compostos essencialmente pela casca e por uma polpa branca densa, não tendo quase nenhum sumo. Arminda corta-os em pedaços e mostra-nos o processo da cidrada já um pouco mais adiantado, numa panela que tem ao lume. Daí sairá a cidra em doce e, numa versão mais cozinhada, tipo marmelada. O que dá mais trabalho, segundo Arminda, é a fase intermédia, em que o cidrão tem que passar por várias águas para perder o amargor.

Foi recentemente que aprendeu todas estas coisas. Até 2019 não tinha sequer ouvido falar dos cidrões. Foi o trabalho de Anabela Ramos e as iniciativas desenvolvidas pelo Mosteiro de Tibães que colocaram, embora ainda de forma tímida, o cidrão de novo no mapa. Desafiada a experimentar a receita de cidrada de um manuscrito guardado no Arquivo Distrital de Braga, Arminda entusiasmou-se com o projecto, mas não é possível fazer muito mais porque as quantidades de cidrões disponíveis são ainda muito limitadas.

Símbolo de felicidade

No livro Cidrão – Na história, no campo e na mesa (Atahca 2014), com textos de Anabela Ramos e do engenheiro agrónomo Augusto Assunção, ficamos a saber que no século XVII “se refere a existência no Mosteiro de Tibães de “larangeiras, limoeiros e sidreiras [sic], assim como a plantação da mesma árvore em vários anos do século XVIII”. Além disso, no mesmo mosteiro “são comuns as compras de doce de cidra, de cidra relada, de cidra com amêndoas ou de cidra com chila.”

Anabela Ramos convida-nos a fazer uma rápida visita ao mosteiro para ficarmos a conhecer a cidreira que Augusto Assunção aí plantou no âmbito deste projecto, fazendo uma enxertia numa laranjeira, o que resulta numa espécie de abraço eterno dos ramos com laranjas e dos ramos com cidrões. Nesta árvore, os frutos são bastante mais discretos do que os da Casa do Rio, tendo um tamanho mais próximo dos limões vulgares.

No tempo em que os monges beneditinos habitavam este convento e fizeram dele um centro de saber – “a partir do século XVI foi um centro agrícola modelo e a biblioteca, que beneficiava do privilégio real de ter livros proibidos, incluía os principais tratados agrícolas portugueses e espanhóis”, sublinha Anabela – o fruto da cidreira era de enorme importância, em grande parte pelas suas alegadas propriedades medicinais.

Dele diz Francisco da Fonseca Henriques, médico e autor de Anchora Medicinal (1721), citado no livro sobre o cidrão: “A cidra é um fruto todo medicamentoso, cordial e estomático. Não tem parte inútil. Da casca de fora se faz aquele doce a que chamam casquinha, e do interior da casca o cidrão, que he o príncipe dos doces. Nutre muyto. O azedo da cidra é cousa mui cordial. Útil para flatos melancólicos, do útero e para febres. Das pevides têm virtudes alexifármaca, por isso se dá a beber nas febres malignas a água cozida com elas. Da casca seca da cidra se faz um xarope de virtude cardíaca. Toda a cidra é um contraveneno.”

Tanto quanto se sabe, e segundo as fontes citadas por Augusto Assunção, este foi “o primeiro citrino a ser conhecido e cultivado na bacia do Mediterrâneo, tendo sido considerado símbolo da felicidade”. Ainda hoje continua a ser cultivado na Grécia, em Itália e em França, sobretudo na Córsega. Em Portugal, resiste com dificuldade, apoiando-se em dois ou três produtores e nas memórias de algumas outras pessoas. É o caso Ana Paula Magalhães, que tem no Mercado Municipal de Braga a loja Tradição de Sabores, onde, por esta altura do Natal, se pode encontrar o cidrão cristalizado, feito por Catarina Martins, da Raiz de Ouro, na Póvoa de Lanhoso.

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O cidrão como fruta cristalizada é utilizado no bolo-rei Nelson Garrido

“Conheço o cidrão desde sempre. Tinha uma árvore no quintal da casa dos meus avós, aqui no centro de Braga”, diz Ana Paula. “Dava frutos que era uma coisa por de mais. A minha avó até fazia uma limonada com aguardente. Tenho um livro antigo dela com a receita dos formigos com cidrão”, recorda. E, claro, havia o cidrão cristalizado a enfeitar o bolo-rei também feito em casa. Continua a vendê-lo na loja (14€ o quilo) quando se aproxima o Natal, mas as quantidades disponíveis são sempre curtas para a procura. O cidrão pode andar um pouco desaparecido, mas está longe de ter sido esquecido.

Na Madeira é o bolo de mel que pede cidrão

Faz parte da receita do famoso bolo de mel da Madeira, mas é difícil saber exactamente em que momento se juntou aos inúmeros ingredientes desta especialidade, diz António Silva, professor da Universidade da Madeira, investigador na área dos patrimónios alimentares e autor de um levantamento sobre as preparações culinárias nos livros de contas dos conventos do Funchal – dessas preparações, “poucas chegaram até nós”, diz, mas uma das sobreviventes foi a do bolo de mel.

“Aqui na Madeira, a cidra não está em vias de desaparecer. Ainda é possível encontrá-la nos supermercados e existem algumas árvores”, assegura o professor. Houve, contudo, uma diminuição importante do número desde que, há cerca de 25 anos, surgiu uma praga que atacou as árvores de citrinos, contextualiza Rui Nunes, engenheiro da Direcção Regional de Agricultura, confirmando, no entanto, que existe actualmente um certo ressurgimento do interesse no fruto, que na ilha é conhecido como cidra (não confundir com a sidra, bebida feita à base de maçã). Os porta-enxertos ajudam os produtores interessados em voltar a produzir, e a procura dos consumidores tem vindo a aumentar. Mas “o pouco que aparece ainda é caro”, sublinha.

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Na Madeira, este fruto é chamado cidra e faz parte dos ingredientes da receita do bolo de mel Nelson Garrido

O documento mais antigo que faz referência à cidra na Madeira “data de 1494, do início do povoamento”, nota António Silva. “Encontramo-la no início do ciclo do açúcar. Era usada para fazer doces, na altura com objectivos medicinais, e era bastante exportado. A casquinha [pedaços de casca cristalizados] tinha um grande mercado na Europa nos séculos XVII e XVIII e começa a ser consumida no final dos banquetes. Depois disso, torna-se mais rara e no século XIX já encontramos poucas referências”, mantendo-se, apesar disso, em receitas como a do bolo de mel ou a do bolo podre.

O que é que os judeus ortodoxos procuram neste fruto? A perfeição

Para quem é estranho à tradição, esta aparenta ser bastante bizarra: numa determinada altura do ano, os judeus ortodoxos dedicam uma parte considerável do seu tempo a olhar atentamente para citrinos. O ritual tem, como é evidente, uma razão de ser, e os citrinos são cidrões, neste caso mais conhecidos pelo nome da variedade, o etrog.

Tudo acontece durante festa dos tabernáculos, que recorda os 40 anos de travessia do deserto do Sinai pelo povo judaico e, ao mesmo tempo, marca a época das colheitas. É uma celebração que acontece entre Setembro e Outubro e nela, de acordo com a Bíblia, os judeus devem agitar em conjunto quatro elementos: as folhas da palmeira, do salgueiro e da murta, e a cidra, cidrão ou etrog.

Como muitas vezes acontece com as tradições judaicas, também esta é uma questão aberta a diferentes interpretações. O que se lê nas indicações do texto bíblico sobre as plantas a usar é a expressão pri etz hadar, que quer dizer algo como “fruto da bela árvore” e que os judeus antigos identificaram como o etrog. Porquê? Trata-se de um fruto originário da China, explica David Z. Moster no livro Etrog: How a Chinese Fruit Became a Jewish Symbol e que continua a ser usado na medicina tradicional chinesa, tendo depois chegado à Índia, onde passou a integrar as práticas ayurvédicas, devido ao que se acredita serem as suas propriedades curativas para diversos problemas de saúde.

Foram, contudo, encontrados restos de pólen deste fruto num antigo palácio Persa no local onde é hoje a cidade de Jerusalém, o que comprova a existência desta planta na região já desde o século VII a.C. E, de acordo com Eleizer E. Goldschmidt, especialista em etrog da Universidade Hebraica citado na secção The Salt da NPR, é usado em rituais religiosos desde pelo menos o século II a.C.

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GIL COHEN MAGEN

Sem saberem exactamente como interpretar a expressão “fruto da bela árvore”, mas querendo cumprir as indicações do texto sagrado, os judeus acabaram por escolher o exótico e perfumado etrog que pouco cresce em Israel, o que obriga à importação de grandes quantidades deste citrino, especialmente de Itália, para a festa do tabernáculo, altura em que pode atingir valores muito elevados, não só em Israel mas também entre a comunidade judaica nos Estados Unidos.

Quando chegam a estes países, são examinados cuidadosamente por muitos judeus ortodoxos, que avaliam da sua perfeição, procurando, muitas vezes com a ajuda de lupas, sinais de algum defeito que obrigue a rejeitar um ou outro. No livro Cidrão - Na história, no campo e na mesa, a investigadora Anabela Ramos explica que “a cidra, que tem cheiro e sabor [ao contrário da palmeira, do salgueiro e da murta, que não conseguem ter as duas qualidades em simultâneo], representa o judeu perfeito”. Terminada a festa, “conserva-se geralmente sob a forma de compota, e é consumido pela família para ter um ano abençoado”, sendo ainda associada à fertilidade e “daí ser consumida por mulheres que desejam engravidar”.

No passado, foi muitas vezes preciso ultrapassar dificuldades imensas para se obter os tão ambicionados etrogim (é o plural, em hebraico). Conta o Jerusalem Post num artigo sobre esta tradição que quando os judeus se espalharam pelo mundo e foram para países frios do Norte da Europa não conseguiam cultivar a árvore da cidra e são conhecidos os relatos de anos em que um único fruto tinha que chegar para as festividades de toda a comunidade.

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Os etrogim (cidrões) atingem valores muito elevados durante a festa dos tabernáculos GIL COHEN MAGEN

Hoje em dia, frutos não faltam, mas a perfeição nem sempre é a ambicionada pelos compradores. Uma simples arranhadela na casca e “o valor pode cair de 100 dólares para perto de zero”, observa o site Explore Parts Unknown, que numa reportagem descreve como um rabi examina o etrog “com o olhar atento de um negociante de diamantes e depois o limpa com uma escovinha” antes de se decidir a pagar o preço que é pedido por ele e que pode atingir 300 ou até 500 dólares por fruto. “O etrog”, explica o rabi ao jornalista, justificando os seus cuidados, “é como o seu coração. E o seu coração tem que estar limpo.”

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