“O Património da Humanidade é a vinha, o olival, o amendoal”

A experiência com o tomate coração-de-boi reforça, se necessário fosse, a ideia de que o Douro é um território muito heterogéneo.

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Enric Vives-Rubio

Que o Douro não é só vinho, já sabíamos. Mas que, mais recentemente, seria o tomate a conquistar visibilidade é algo inesperado. Mas é também, por outro lado, a prova de que, quando há uma boa estratégia, se conseguem resultados. Interrompido, entretanto, pela pandemia, o concurso do tomate coração-de-boi do Douro ia em 2019 na sua quarta edição e com um sucesso crescente.

A ideia foi desafiar os hortelãos locais a competir com o melhor tomate coração-de-boi, mostrando a excelência do terroir do Douro para este produto – e, na sequência disso, fazer dos restaurantes da região, durante cada mês de Agosto, uma montra das melhores formas de o servir à mesa.

“Conseguimos ter uma dinâmica muito saudável de competição na procura do melhor terroir e do melhor sítio para cultivar na região”, confirma o arquitecto paisagista João Bicho, responsável pela horta da Quinta do Ventozelo. Têm ganho as zonas mais frescas porque “o tomate fica mais consistente, não amadurece tão depressa”.

A experiência com o tomate reforça, se necessário fosse, a ideia de que o Douro é um território muito heterogéneo. “Temos um Douro de Mesão Frio até Foz Côa com microssítios muito diferentes. E depois temos uma coisa ainda mais complicada, porque vamos das margens do rio, a uma quota 80, até à quota 400, ou 700, em alguns sítios”, explica João Bicho.

Para as hortas, os locais mais indicados são os próximos do rio. “Aí o Douro é mais temperado, com menos frio, menos geadas, o que nos permite ter algum adiantamento das culturas e sabores mais aprofundados.” Foi precisamente essa intensidade de sabor que encantou Abílio Tavares da Silva, produtor de vinho da Quinta de Foz Torto (e, juntamente com Celeste Pereira, da empresa de comunicação Greengrape e com o jornalista Edgardo Pacheco, organizador do concurso do tomate).

“As condições extremas”, diz Abílio, “favorecem a síntese de óleos essenciais. Aqui o Inverno é bastante frio e o Verão muito quente e isso pode diminuir a produção, mas também melhorá-la. As coisas são mais saborosas porque o clima favorece isso.” Ao clima juntam-se os solos. “Temos um solo muito pobre em macronutrientes, mas muito rico em micronutrientes, devido à sua origem xistosa. Com este clima e este solo, qualquer erva, mesmo infestante, tem aromas e sabores muito intensos.”

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Daniel Rocha

Quem passear pelo Douro nesta altura do ano verá as hortas cheias de couves-pencas para o Natal, mas também, enumera João Bicho, nabos, acelgas, beterrabas, alfaces, funcho, aipo. E, no caso dos hortelãos que se tenham antecipado um pouco, favas, ervilhas, alho, chalotas. “Tendo água disponível, conseguimos cultivar praticamente tudo. O único factor que pode limitar é o frio, porque no Inverno podemos ter alguns dias de geada.”

Concorda inteiramente com o Abílio quanto aos aromas e sabores. “Sim, são mais intensos, por um lado, por via do solo e, por outro, por termos um clima muito duro, quente e seco no Verão. O que detectamos nesses aromas são sobretudo compostos voláteis que a planta usa para se proteger da perda de água. Um tomilho, um manjericão, quando sofrem stress hídrico, vão ficar mais aromáticos do que se forem plantas mais mimadas. No fundo, preciso de não dar tanto para que a planta me dê mais.”

Se é assim nas plantas aromáticas, já na horta “é preciso ter mais generosidade” e regar quando necessário. E, sublinha, é muito importante, no tomate ou nas outras produções, ir guardando as sementes das melhores plantas para, numa selecção natural, garantir que se tem o melhor material para a próxima plantação.

O concurso do tomate coração-de-boi veio dar esse novo dinamismo às hortas e, em simultâneo, valorizar o trabalho dos hortelãos. “Há quintas que sempre tiveram hortas, outras que deixaram de ter porque a questão da mão-de-obra foi sempre um problema grande aqui”, contextualiza João Bicho. “Mas com o aparecimento do turismo, muitos perceberam que era uma mais-valia, até porque, geralmente, não são zonas ideais para a cultura da vinha.” O tomate pode, por isso, ser visto como um caso de estudo que anime os produtores durienses a olhar para outros tesouros locais. “As laranjas do Douro são um património fantástico e, infelizmente, pouco valorizado”, lembra o arquitecto paisagista. “Há muita fruta aqui, mas antigamente só os laranjais é que eram murados”, acrescenta Abílio Tavares da Silva. “As laranjas são pequeninas, de casca fina. Não há nada que saiba tão bem como uma laranja dessas. Mas para as manter temos que ir aos laranjais antigos buscar um raminho para enxertar. São coisas que já não se encontram nos viveiristas e isso é uma tragédia.”

Do lado das boas notícias temos não apenas o renascimento do tomate coração-de-boi, mas também uma aposta muito mais consistente no olival do Douro, geralmente da parte de produtores já firmados no mundo do vinho. Francisco Pavão, presidente da Associação dos Produtores em Protecção Integrada de Trás--os-Montes e Alto Douro, e um dos homens que mais sabem sobre azeites da região, diz que “as quintas entenderam que, tendo a notoriedade dos vinhos, iam recuperar o olival”. Até porque “o olival é parte integrante da paisagem duriense”. Ou melhor, e para que fique bem claro: “Olhamos para o Douro e pensamos na paisagem com Património da Humanidade, mas o Património da Humanidade é a vinha, o olival, o amendoal, os matos mediterrânicos.”

Tal como acontecia historicamente por todo o país, a tradição do Douro é a do field blend no olival (e na vinha). Ou seja, as diferentes variedades são plantadas misturadas e é assim, num equilíbrio natural de sabores e intensidades, que chegam à garrafa. São, segundo Francisco Pavão, azeites com uma identidade muito própria, um perfil facilmente identificável. E, no entanto, estes olivais tradicionais, antigos, alguns centenários, têm entre si uma grande diversidade.

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Enric Vives.-Rubio

Expliquemos: “No Baixo Corgo temos azeites com muitas notas de frutos secos e verdes e, conforme vamos subindo em direcção a Barca de Alva, essas notas vão-se tornando maduras. Da amêndoa verde no Douro Superior, passamos para a amêndoa madura, a castanha, a maçã.” Diferenças que têm a ver não apenas com os terroirs, mas também com as misturas de variedades e a forma como os olivais foram plantados.

Falando das hortas, João Bicho já tinha destacado a importância das diferenças de quotas que existe em torno do rio. Também no olival elas têm influência, nota Francisco Pavão. “A questão dos solos, dos patamares, da luminosidade, tudo influencia essas notas dos azeites. Os da margem esquerda têm notas diferentes dos da margem direita, por exemplo, e isso tem a ver com a exposição solar.”

Se pensarmos numa questão que é cada vez mais relevante, a das harmonizações dos azeites com diferentes comidas, então a sugestão do especialista é que se experimente os do Cima Corgo e Baixo Corgo em sobremesas, sorvetes, mousse de chocolate, porque “têm notas doces e picantes”, que também vão bem com um bacalhau, por exemplo, e que se reserve os do Douro Superior, “que já têm mais algum amargo”, para carnes vermelhas grelhadas. Temos, portanto, do lado positivo, os exemplos do tomate e do azeite. Para onde seria bom olhar agora? Já aqui falámos dos laranjais, e de como seria importante voltar a valorizar a laranja do Douro. Mas há outro produto que todos os nossos interlocutores citam e que precisa de uma atenção urgente: a amêndoa.

Francisco Pavão mostra-se preocupado. “A área de amendoal diminuiu drasticamente. A perda de biodiversidade é muito grande. Enquanto no olival ainda resistimos, em Trás-os-Montes, nas Beiras, no Douro, plantando variedades tradicionais, no amendoal já praticamente ninguém o faz. Aí é que vamos perder completamente sabores e tradições”, alerta. “As nossas amêndoas, tradicionalmente, são de casca dura, mas hoje quase só se encontram as de casca semi-mole, que dão mais rendimento.”

Para contrariar essa tendência seria importante “ter programas que valorizassem a amêndoa do Douro, ligando-a, por exemplo, à doçaria”, como acontece com a amêndoa coberta de Moncorvo, feita apenas com variedades tradicionais. Abílio Tavares da Silva partilha essa preocupação. “A Califórnia produz 80% das amêndoas do mundo, mas não sabem a nada. As amêndoas aqui no Douro são outra coisa, e há maneiras muito boas de as fazer. No forno, com manteiga e flor de sal, não há forma de deixarmos de as comer.”

É fundamental entender que a amêndoa, tal como a laranja, o tomate ou a azeitona, dão outra identidade ao terroir, defende o produtor, para concluir: “Há muitos produtos que a malta daqui sabe que são muito bons, não é só o vinho. São produtos que enriquecem o vinho e a região. Na altura do tomate, em Agosto, as pessoas vêm de propósito aos restaurantes porque, por muito dinheiro que tenham, estes tomates não encontram em Lisboa ou noutras zonas do país. E esta é uma forma inteligente de se valorizar o território.”

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