As grandezas e as misérias da mais extraordinária região vinhateira do mundo

Depois de séculos a viver do vinho do Porto, o Douro despertou para os vinhos tranquilos há cerca de 30 anos e, desde então, tem acumulado distinções e um reconhecimento sem paralelo no país. Grande parte deste sucesso teve origem no PDRITM, um programa de desenvolvimento que introduziu grandes mudanças na paisagem vinhateira, umas boas e outras más. O que não mudou foi o fosso social entre ricos e pobres. Na verdade, até se agravou, mesmo depois de a região ter sido inscrita como Património Mundial.

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Nelson Garrido

Não deve haver no mundo outra região vinhateira que, em tão pouco tempo, tenha mudado tanto o seu perfil de produção como o Douro. Em apenas 30 anos, deixou de ser “só” o “país” do vinho do Porto, assente numa história secular, para se tornar também na mais famosa região portuguesa em vinhos tranquilos. Esta transformação — uma revolução, na verdade, porque as revoluções fazem-se sempre com rapidez —, coincidiu em grande parte com a inscrição do Douro Vinhateiro como Património Mundial. Mas começou antes.

Foi mais ou menos contemporânea de outra revolução, a de Abril de 1974. No final dessa década, deu-se início a um extraordinário projecto de selecção, melhoramento e conservação de videiras que teve como rostos principais Antero Martins (Instituto Superior de Agronomia), Nuno Magalhães (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro) e Luís Carneiro (Estação Agronómica Nacional). Estes pioneiros começaram pelo Douro e pela Touriga Nacional, casta quase extinta, na altura. Os produtores de vinho do Porto conheciam bem o potencial desta variedade, mas os viticultores que viviam apenas da venda de uvas detestavam-na, por produzir pouco e ser demasiado selvagem e difícil na vinha. “Quando chegava a uma vinha e falava na casta, o caseiro respondia-me: ‘Disso já cortei tudo’”, contou um dia Nuno Magalhães.

Naquela altura, um dos poucos viticultores que ainda tinham Touriga Nacional, numa vinha perto da Régua, era um classificador de castas da Casa do Douro, de apelido Canário. “Toda a gente queria a Touriga do Canário, porque era considerada a melhor. Estudámo-la e, de facto, era boa, mas não era a melhor”, lembrou Antero Martins, numa visita, o ano passado, ao pólo experimental de Pegões da Porvid — Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira, a que preside. Seja como for, a Touriga do “Canário” acabou por ser replicada em muitas outras vinhas, e com este e outros passos foi reconquistando o seu prestígio, até se converter na casta-bandeira dos tintos do Douro e do país.

Graças ao trabalho realizado por outros estudiosos do Douro, como foi o caso de José António Rosas e o seu sobrinho João Nicolau de Almeida (casa Ramos Pinto), a Touriga Nacional, juntamente com a Touriga Franca, a Tinto Cão, a Tinta Roriz e a Tinta Barroca, viria a fazer parte do quinteto de castas que serviu de base às novas plantações na região, iniciadas em força a partir da segunda metade da década de 80, com o apoio do PDRITM (Programa de Desenvolvimento Regional Integrado de Trás-os-Montes). Foram reestruturados 300 hectares de vinhas e plantados 2500 hectares de novas vinhas, o que fez aumentar a área de vinha em cerca de 8,4%. Depois da demarcação pombalina de 1756-58, da filoxera, entre os finais do século XIX e inícios do século XX, e da mudança dos muros em pedra solta para os muros em terra iniciada em meados da década de 60 do século passado, na sequência da grande vaga de emigração, nenhuma outra intervenção tinha causado tanto impacto na paisagem duriense.

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Depois da demarcac¸a~o pombalina de 1756-58 e da filoxera, entre os finais do se´culo XIX e ini´cios do se´culo XX, nenhuma outra intervenc¸a~o tinha causado tanto impacto na paisagem duriense. Nelson Garrido

As novas plantações tinham um objectivo principal: inverter a degradação da qualidade do vinho do Porto. As vendas cresciam, mas as vinhas mais mal classificadas estavam a ter um peso cada vez maior no mosto beneficiado. Com o PDRITM, a área de vinhas das letras A e B, consideradas as mais aptas à produção de vinho do Porto, cresceu 52%. O impacto acabou, no entanto, por ser muito mais vasto. O cultivo da vinha, praticamente manual durante séculos, abriu-se à mecanização, com a introdução de novas formas de plantio — os patamares e as vinhas ao alto —, melhorando as condições de trabalho dos viticultores. A qualidade geral dos mostos também aumentou. De tal forma que algumas empresas e produtores individuais passaram também a produzir vinhos tranquilos, aproveitando os excedentes e os conhecimento das fornadas de jovens enólogos que começavam a sair da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Aos poucos, o vinho do Porto foi cedendo parte da sua hegemonia ao novo DOC Douro. A premissa era simples e básica: se as uvas eram boas para vinho do Porto, e essa evidência vinha desde pelo menos 1678, ano da primeira exportação oficial registada, também podiam fazer grandes vinhos tranquilos. Já havia até um exemplo famoso, o Barca Velha, lançado pela primeira vez em 1952. Dos vinhos de cooperativa, dos então famosos Cabeça de Burro (Peso da Régua), Conde Guião (Santa Marta de Penaguião), Plátano (Alijó), Fraga de Ouro (São João da Pesqueira) e Caves da Porca (Murça), aos pioneiros individuais, a Quinta do Côtto e a Quinta da Pacheca, por exemplo, aos primeiros vinhos pós-PDRITM, o Duas Quintas (Ramos Pinto) e o Quinta da Gaivosa, por exemplo, e a todos os outros que se lhes seguiram, com destaque para os vinhos do grupo informal Douro Boys, com Dirk Niepoort à cabeça e que atraíram os holofotes da crítica internacional para a região, o Douro DOC nunca mais parou de crescer e de melhorar, até chegar ao que é hoje.

Mas todas as histórias têm o seu reverso. O PDRITM e alguns dos programas de apoio que se seguiram não tiveram só coisas boas. Também deixaram marcas negativas na paisagem vinhateira. Em nome de uma boa ideia, foram plantadas vinhas sem qualquer preocupação estética e nos sítios mais inimagináveis, desde linhas de água a cumeadas, conduzindo a grande erosão de terras e a derrocadas maciças de patamares e até de estradas públicas. A paisagem tradicional, dominada pelos socalcos com terraços murados, foi desvirtuada de uma forma significativa e um grande número de vinhas velhas, algumas, verdadeiras relíquias, foram destruídas para dar lugar às novas vinhas da “CEE”, como então se dizia. A situação não teve consequências mais dramáticas porque, a partir de 2008 e após a classificação do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial, foram introduzidas regras mais apertadas na aprovação das novas plantações. “A classificação do Douro como Património Mundial acabou com a industrialização da viticultura regional”, diz João Nicolau de Almeida.

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Nelson Garrido

Aconteceu também um fenómeno curioso e paradoxal, que contraria o objectivo principal do PDRITM: por causa do sucesso do DOC Douro, as melhores uvas — tirando as das companhias mais focadas neste vinho fortificado — começaram a ser desviadas para os vinhos tranquilos. Ou seja, a qualidade geral das gamas mais baixas de vinho do Porto poderá estar a diminuir novamente. Mas, desta vez, poderemos estar perante um dano colateral mais ou menos benigno, se este fenómeno resultar numa maior aposta nas categorias especiais, no Porto Vintage e nos Tawnny velhos e datados, como tem acontecido nos últimos anos, fruto, em grande parte, do boom turístico. O vinho do Porto barato não interessa à região.

Não interessa o vinho do Porto que custa quase tanto como o Martini e não interessa o DOC Douro que é vendido ao mesmo preços dos vinhos de regiões planas e muito mais produtivas, cada vez mais a regra (os vinhos caros do Douro são a excepção). O resultado está à vista: 20 anos depois da entrada do Douro na lista do Património Mundial, os rendimentos da lavoura diminuíram. A quantidade de uvas por hectare que podem ser utilizadas para vinho do Porto, as mais bem pagas, baixou para cerca de metade. E tanto os preços médios das uvas para vinho do Porto como os das uvas para vinho DOC Douro são inferiores ao que se pagava em 2001. Aplicados os coeficientes de inflação com base nos preços praticados nessa altura, a quebra é da ordem dos 40%. E pior: os custos de produção aumentaram na mesma proporção ou até mais. Em contrapartida, aumentou a concentração do negócio em torno de umas poucas companhias, que têm crescido e expandido o seu poder.

Nenhuma região pode aguentar por muito mais tempo uma realidade tão iníqua como esta. O fosso social existente no Douro, histórico e paradoxal face à riqueza da região, constitui, de resto, a maior ameaça à preservação da paisagem vinhateira. Ignorar isso é brincar com o futuro do próprio Douro, que, apesar de tudo, continua a ser a mais bela região vinhateira do mundo.

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