Violência hospitalar: a guerra do acesso aos tratamentos

Makas de uma angolana 5 Cheguei à urgência para acordar horas depois na Medicina 1C. Foi aí que, entre internamentos, tomei consciência da premência de lutar pelo direito dos doentes ao acesso a tratamentos.

Estávamos no final dos anos 80 e inícios dos anos 90 quando fiquei a saber que era irreversível, teria de deixar a Pediatria Hematológica e a equipa na altura chefiada pelo Dr. Lino Rosado para começar a ser seguida por um profissional Hematologista. O tempo marcou o último dia comigo de mão dada com a minha mãe, a descer pela última vez as escadas do prédio onde morava a minha pediatra para lhe deixar os gladíolos de que ela tanto gostava. Fixei-lhe o sorriso que só desapareceu no final das escadas, para dar lugar ao barulho de uma porta a bater pela última vez. A partir dali tudo seria diferente e eu sabia-o. A guerra começaria assim...

Tinha passado a tarde sob o olhar atento de uma senhora a acariciar-me a nuca e a afagar as lágrimas enquanto eu me concentrava no exercício de contar até 60, para de novo voltar ao minuto um. Numa enfermaria que deveria ter umas doze camas, seis de cada lado, a voz dela soava a embalo confidenciando baixinho: “Não vá à casa de banho. Neste serviço estão pessoas com todo o tipo de doenças, pessoas que podem ter doenças infeciosas. Se precisar de alguma coisa, diga-me”. Estava no Hospital Santo António dos Capuchos, mais de 24 horas haviam passado e nenhum médico entrara para me observar.

Passavam das quatro da tarde quando ouvi os saltos altos da minha mãe anunciando a chegada para a hora da visita. Pedi-lhe para me tirar dali. Ela hesitou e nessa altura eu levantei-me, atei ao joelho a fronha da almofada onde pousava a perna e fui andando sozinha em direção à porta. A minha mãe seguiu-me e colocou-me num táxi. Eu chorava e ao longe ainda ouvia a minha mãe a falar com a minha antiga pediatra: “Leve-a para o Hospital Santa Maria. Já tivemos um ex-doente que perdeu a total mobilidade de uma perna por falta de tratamentos”.

Inanimada, cheguei à urgência do Hospital Santa Maria para acordar horas depois na Medicina 1C. Foi aí que, entre internamentos, tomei consciência da premência de lutar pelo direito dos doentes ao acesso a tratamentos. Não que na Medicina 1C não tenha sido bem tratada, muito antes pelo contrário, encontrei uma equipa extraordinária de médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem dirigidos pelo incansável especialista em Medicina Interna, Dr. Saavedra, mas também encontrei uma porta que dizia algo como “Infecto – Interdita a Entrada de Pessoal não Autorizado”. Ora isto para mim, que tinha 14 anos, era um convite para entrar e certa vez, sem que ninguém estivesse nos corredores, fui ver o que se passava por detrás da porta. De gatas, escondi-me por detrás do carro da enfermagem e fui sendo confrontada com gritos, ofensas, maus-tratos, pedidos de ajuda, gemidos. Era noite, já tinha passado a hora do jantar. De vez em quando saía de uma pequena sala uma enfermeira que interpelava a auxiliar para que alguém calasse o da 57, que estava a tocar à companhia e elas, na sala, queriam trabalhar. Mantive-me ali por uns 30 minutos testemunhando gritos da equipa enfermagem para os doentes. Entravam e saíam da sala como sombras movendo-se fora dos corpos, sempre a bater com as portas à vida até desaparecerem nos corredores. Senti uma profunda dor no peito e, nos meus 14 anos, sem saber o que estava a acontecer, voltei de gatas até à minha cama. Chorei. Na mudança de turno, a enfermeira perguntou-me se estava com dores ao que lhe respondi questionando: “Nunca me vão colocar atrás daquela porta, pois não?” A enfermeira fez-se lívida, sem saber se me confrontava com o óbvio.

Foi preciso quase um ano para perceber que aquele era o serviço que acolhia doentes com HIV, doença que só nos anos 90 começou a ser noticiada e debatida na televisão, pelo menos oficial e abertamente, após a notícia da morte do Freddy Mercury, em 1991. Nesse dia dei por mim de volta àquela noite, de gatas, escondida atrás do carro de enfermagem e comecei a ordenar as peças na minha cabeça de adolescente. Sei que levei semanas às voltas com a morte do músico, como se a de um familiar fosse, como se repentinamente ele estivesse por detrás daquelas portas que batiam sempre que alguém da equipa de enfermagem de lá saía como que a dar pontapés à vida.

Philadelphia”, de Jonathan Demme, chega a Portugal em fevereiro de 1994, estava eu no 12.º ano a estudar para entrar na Faculdade. Já tinha um médico Hematologista, o irmão mais velho que a vida me ofereceu e que me acompanha há mais de 30 anos, o Professor Dr. João Mascarenhas Forjaz de Lacerda, um dos homens mais importantes na minha vida, a quem eu devo uma infinidade de coisas absolutamente incontáveis e por quem eu nutro o maior respeito, admiração, consideração e amor fraterno.

Fui instintivamente ver o filme, ainda que o HIV não fosse algo com que eu convivesse no meu quotidiano, sabia que tinha de ver aquela história no grande ecrã. Aquela noite, aqueles gritos, aqueles silêncios, tudo aquilo fez com que parte de mim ficasse presa atrás daquele carrinho de enfermagem, numa misteriosa ligação a rostos que não vira, a corpos que não conhecera. Nessa altura já sabia que a doença era mais do que uma ordem para lutar, era uma resistência na fileira da guerra armada de Fortuna. Que na doença éramos todos iguais, estávamos a jogar na mesma mesa de xadrez, não havia nada que nos diferenciasse e que os gemidos eram todos orações a uma espécie de deus que, por mais que rogássemos, se fazia ausente das paredes do hospital.

Um dia pedi ao meu médico para fazer o teste de HIV. Ele olhou-me muito sério. “Cuidado com o que andas a fazer”. Pedi para fazer o teste mais vezes, em diferentes alturas da minha vida. Já fiz três, todos com grande consciência de que entre mim e os doentes por detrás daquela porta continua a não haver qualquer diferença que não seja a de lutar por tratamentos. E eu, de uma forma ou de outra, desde que nasci luto por isso. Já vi tantas doenças a avançar clinicamente, mas no que à Anemia de Células Falciformes, doença diagnosticada em 1910, portanto há mais de 100 anos, a evolução ao nível dos tratamentos permanece nula.

Hoje, o HIV é uma doença crónica, existe tratamento e a ciência soube responder ao ativismo e à pressão social feita pelos portadores que se organizaram em grupo, com destaque para a comunidade LGBTQI+, no mundo, e para o Grupo de Ativista em Tratamentos, em Portugal, que têm feito um trabalho gigante dando primazia à voz e, como exemplo, a formar em outras minorias o sentido cívico de empoderamento expresso numa necessidade intrinsecamente reivindicativa. No entanto, a Anemia de Células Falciformes ou como os ingleses designam “Sickle Cell Disease” continua a ser “an invisible condition”. E porquê? Porque é maioritariamente uma doença de negros, a fazer vítimas em pessoas oriundas de África, da América Latina e do Caribe e isso faz toda a diferença, mesmo para uma patologia que é considerada pela OMS como uma doença grave.

Há cinco anos que se vem falando da cura, já houve lugar a vários ensaios clínicos levados a cabo por Hematologistas que registaram resultados positivos. A Fundação Bill Gates doou fundos apoiando a investigação clínica e promovendo o acelerar da cura da doença. A Novartis vem procurando, sem sucesso, que em Portugal administradores hospitalares, médicos especialistas em Hematologia, Infarmed, enfim, a comunidade de clínicos e gestores hospitalares transmitam aos doentes um sinal positivo no que à possibilidade de acesso a tratamentos, que já se fazem na Europa (há casos no Reino Unido e em França), diz respeito.

Nada muda desde 1910, e os doentes negros estão no fim das prioridades dos especialistas em Hematologia, mais debruçados em pesquisas sobre a Leucemia que vai acumulando centros de investigação, equipas de cientistas e meios. Da Anemia de Células Falciformes, que se saiba, nem um único núcleo de estudo existe.

A doença também tem cor, vive carregada de preconceitos, o tal racismo estrutural de que, em Portugal, ninguém quer falar, mas que justifica que permaneça, nas gavetas fechadas do Hospital Santa Maria, o maior hospital do país, o pedido de um grupo de profissionais que quer levar por diante o tratamento, numa tentativa sentida de dar resposta a tantos gemidos que perduram nos anos, encostados às paredes, por cima das macas, deambulando pelas urgências, com impressões digitais nos equipamentos que transportam oxigénio, vigiando o Banco de Sangue, tantas vezes desesperando por morfina e sempre querendo ganhar, por uma vez que seja, às sombras que por detrás daquela porta se mantêm presas à indiferença secular de uma classe médica que não está sensibilizada e sequer sabe o que é a Dor.

É que o fim da violência hospitalar também se faz da luta sem término pelo direito a tratamentos.

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