Jovens ex-acolhidos em instituições. “O que se passa na infância não fica na infância”

Não são reconhecidos enquanto grupo, o que os deixa de fora de medidas de incentivo a emprego, a menos que integrem outro grupo, esse sim considerado vulnerável . E priva de financiamento público organizações que a eles se queiram devotar. Quarta e última parte da nova série sobre inclusão laboral.

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José chegou a ficar sem-abrigo Adriano Miranda

Hugo Pascoal está cansado. Trabalha da 1h às 9h da manhã no estacionamento do Fórum Coimbra. Apanha lixo, varre, limpa teias de aranha, deixa tudo num brinco. Naquele dia, sentira uma dor de costas. Passara pelas urgências antes de ir à PAJE – Plataforma de Apoio a Ex-acolhidos.

João Pedro Gaspar, coordenador da PAJE, descreve o rapaz, de 26 anos, como “um vencedor”. Nasceu com síndrome fetal alcoólico, o que lhe provocou uma deficiência intelectual. Contava dois anos e meio quando foi retirado à família, com um irmão e uma irmã. Cresceu numa instituição, visitando com regularidade a mãe, que nunca reuniu condições para o voltar a acolher.

Não se queixa das condições no Lar de S. Martinho – Obra do Padre Serra. “Eu queria voltar para casa, mas sabia que não tinha hipótese. Ali estava melhor.” Fez o Curso de Cozinha/Pastelaria, que lhe deu equivalência ao 12.º ano. E, aos 21 anos, mudou-se para uma residência de autonomização.

Um terço dos acolhidos tem de autonomizar-se

Todos os dias, há crianças e jovens retirados à família e colocados à guarda de instituições, sobretudo, por falta de supervisão e acompanhamento, mas também por maus tratos, abuso sexual, mau comportamento. No ano passado, estavam em acolhimento 7046 – 503 com mais de 15 anos. Uma boa parte tinha perspectiva de reintegração na família de origem (35,4%), mas quase outro tanto devia preparar-se para a vida autónoma (33,8%).

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Hugo Pascoal Adriano Miranda

Tirando Lisboa, que tem a Santa Casa da Misericórdia e a Casa Pia, escasseiam apartamentos destinados a apoiar a transição para a vida adulta. Essa resposta está, contudo, a aumentar. Passou de 46 vagas em 2015 para 120 em 2020. O Instituto de Segurança Social lançou no Verão um aviso para criar mais 300 vagas e recebeu 63 candidaturas.

Ninguém contestará a necessidade. Na instituição, a campainha tocava para o pequeno-almoço, o almoço e o jantar. Hugo não precisava de fazer a cama, de ir ao supermercado, de cozinhar, de pôr a mesa, de lavar a louça. No apartamento, deveria aprender a gerir o dinheiro, a ir às compras, a arrumar cada coisa no seu sítio, a limpar a casa, a tratar da roupa, a preparar as refeições. “Fazia tudo”, diz ele.

Na PAJE, ajudaram-no a fazer o currículo, a imprimir alguns exemplares, a perceber onde entregá-los. A entrevista que teve num restaurante não correu bem. Não conseguiu estrelar bem uns ovos. Encontraram-lhe então uma oportunidade numa empresa de limpezas, a tempo parcial. Aos fins-de-semana, no Fórum Coimbra, levantava e arrumava tabuleiros, limpava mesas e cadeiras. 

Vendo que acordava a horas, cumpria horários, revelava responsabilidade, João Pedro ajudou-o a dar o salto para um trabalho a tempo inteiro, como copeiro. “Limpava tudo o que sujavam”, diz Hugo. Cansado daquele ambiente, voltou à empresa de limpezas, mas já a tempo inteiro. E lá se mantém. “Tem de ser. O dinheiro não vem sozinho para casa.”

João Pedro confessa que se questionou se alguma vez Hugo conseguiria ser autónomo. “Ele tem surpreendido”, admite. “Faz-me acreditar nos outros. Há pessoas que pensamos que vão ficar ligadas a instituições a vida toda, mas conseguem autonomizar-se, se tiverem oportunidade, apoio.”

O relatório CASA 2020 mostra como o desfecho não é igual para todos. No ano passado, saíram da situação de acolhimento 2359 jovens. A maioria (78%) foi para uma família – os pais, a mãe ou o pai (53%), os avós ou os tios (13%), uma família adoptante (85) ou uma família idónea (4%). O resto transitou para a vida independente (15%) ou para outra instituição – 1% para centro educativo, 2% para acolhimento residencial de pessoas com deficiência, 2% para outras respostas residenciais.

“O apoio pode ser importante para aqueles que precisam de um jeitinho, mas essencialmente para estes, que estão num limbo, que têm dificuldades, mas também têm capacidades e que, se tiverem uma rede de suporte, conseguem ser a melhor versão possível de si próprios”, comenta João Pedro. “É muito desafiante para nós. Consome-nos muito.”

Um exemplo marcante é o de um jovem que prefere não ser identificado, a que chamaremos José e que também tem um défice cognitivo – a mãe punha-o num galinheiro quando queria controlar o seu raio de acção. Nem sabe com que idade entrou no Lar de S. Martinho – Obra do Padre Serra. Cinco, seis anos? Tinha 17 quando saiu.

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João Pedro Gaspar Adriano Miranda

Foi antes do chamado Plano DOM, que forçou lares de infância e juventude com ou sem acordo de cooperação ou gestão com o Instituto de Segurança Social a a qualificarem a sua intervenção. Nem havia equipa técnica. Havia uma governanta e algum pessoal a tratar das limpezas, das roupas, da alimentação. Era como se fossem uma grande família. Todos, das crianças de colo aos jovens de 21 anos, deviam encarar-se como irmãos e irmãs. Perante um namoro ou um envolvimento entre um rapaz e uma rapariga, o rapaz tinha de sair.

Quando José caiu em tentação, contactaram uma irmã que ele tinha em Vila Real e que mal conhecia. Ela ainda o acolheu, mas não por muito tempo. “Eu é que… as companhias, pronto, já se sabe.” Não colaborava, saia quando lhe apetecia, bebia demasiado. “Ela mandou-me embora. A roupa ficou toda lá. Não trouxe nada.”

Voltou para Coimbra, a cidade que conhecia. Não podia, porém, voltar para a única casa que conhecia. Começou a dormir na rua. “Nas caixas multibanco. Com as senhas de autocarro, abria as portas. Pela uma da manhã, passava uma carrinha com comida e cobertores e eu ia lá buscar”, conta agora. Um amigo de João Pedro Gaspar deparou-se com o rapaz e ligou-lhe.

Ainda nem havia PAJE. Desde o virar do século que, a título informal, João Pedro Gaspar e a irmã, Fernanda Gaspar, que também é psicóloga, acompanham ex-acolhidos. “Estava de férias no Algarve”, recorda. Falou com a polícia e com a emergência social. “Foi encaminhado para alojamento. Depois, foi colocado no Centro de Alojamento Temporário Farol, da Cáritas de Coimbra.”

Não ficou muito tempo desocupado. João Pedro arranjou-lhe trabalho nas piscinas. Chegada a passagem de ano, foi para Aveiro e deixou-se ficar três dias. “Falhei”, admite. Naquela altura, João Pedro teve uma conversa séria com ele. E ele fez “uma caminhada de reflexão”. 

Conseguiu encontrar-lhe outra oportunidade na já referida empresa de limpezas. “Ele vivia no centro temporário e o trabalho era no outro lado da cidade. Entrava às sete da manhã”, recorda o coordenador da PAJE. “Ao domingo é que eram elas. Não havia transporte no horário. Eu ia lá buscá-lo às 6h30. Ele estava sempre pronto, à espera. Quando eu não podia, uma pessoa amiga ia.”

José não falhou. “Não podia falhar”, diz ele. “Não quero voltar ao mesmo.” Estabilizando no trabalho, mudou-se para um apartamento partilhado. Depois, apaixonou-se por uma colega. Estiveram juntos 12 anos. A relação terminou há pouco. Desde então José mora sozinho.

Possibilidade de voltar atrás já estava no Parlamento

Muito mudou, entretanto. “Agora, a lei até diz que podem ficar até aos 25 anos, mas se quiserem voltar não podem”, enfatiza João Pedro. “A vida institucionalizada não é resposta para quem tem 18 anos. Mal têm 17, começam a contar os dias para sair. Há alguma pressão dos colegas, dos amigos. Se precisarem de retaguarda de novo, aquela casa já não existe. Não pode acolhê-los. Não pode cuidar deles.” 

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Jovem que prefere não ser identificado Adriano Miranda

Contactaram todos os grupos parlamentares. BE, PCP, PEV apresentaram propostas de lei. Ia abrir-se uma hipótese. Até aos 21 anos, podiam voltar atrás. Até aos 25, se estiverem num percurso formativo. De repente, a Assembleia da República foi dissolvida.

Desde que foi constituída, em 2016, a plataforma já prestou algum tipo de auxílio a perto de 280 jovens. Para uns, foi pontual. Para outros, é algo que perdura. “Nem é um apoio, é uma presença”, torna João Pedro. “Nós estamos presentes, como amigos.”

Tudo começou de forma informal. João Pedro dava apoio pedagógico e supervisionava equipas técnicas do acolhimento residencial. Instigado pela prática, tornou-se investigador do Instituto de Psicologia Cognitiva (IPC) da Universidade de Coimbra e pôs-se a estudar as transições para a vida adulta (agora é investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares da mesma instituição). 

Primeiro, o centro de operações era uma sala do IPC. Agora, é um monobloco climatizado cedido pela Câmara de Coimbra. “Não temos dinheiro”, resume. Não têm um acordo de cooperação com o Instituto de Segurança Social que permita crescer.

A associação funciona com um núcleo de voluntários. “Para ser instituição particular de solidariedade social pedem-nos um público-alvo e o nosso público-alvo não está tipificado”, esclarece. “Muitos foram vítimas de violência doméstica. Temos alguns na prisão. Temos alguns sem-abrigo. Temos alguns que fizeram tentativas de suicídio. Temos casas de acolhimento que pedem ajuda na transição para a vida adulta de jovens que ainda estão acolhidos.”

Reclama o reconhecimento do estatuto ou da figura do ex-acolhido. “Seria uma forma de discriminação positiva.” Isso viabilizaria a existência de organizações como a PAJE.  E poderia facilitar o acesso ao mercado de trabalho. Assim, só beneficiam de medidas de incentivo ao emprego se tiverem outras vulnerabilidades, como ser vítimas de violência doméstica, ex-reclusos ou pessoas com deficiência.

No entender de João Pedro, está na hora de perder ilusões sobre quem sofre algum tipo de abuso ao ponto de ser retirado à família e acolhido numa instituição. “Há bons exemplos, como o jogador de futebol Éder, mas são pessoas potencialmente vulneráveis pela sua história de vida. O que se passa na infância não fica na infância. Mesmo adultas, continuam a sofrer as consequências, não só no aspecto cognitivo, mas também emocional, o que as impede de concretizar projectos de vida no imediato, o que faz com que precisem de apoio.”

Naquele dia, por exemplo, Hugo fora ali buscar um cobertor. Tinham-lhe feito um enxoval quando se mudara do apartamento de autonomização para partilhar um apartamento com uma irmã e um sobrinho, mas houve um problema lá em casa. Quis sair. Fora partilhar casa com outros jovens, mas era verão. Deram-lhe roupa de cama leve. Chegando o Inverno, precisa de reforço.

José já tem 33 anos, mas também continua a telefonar, a aparecer. Sempre que ele e a irmã se desentendem, lá está João Pedro a mediar. Valoriza o apoio que tem tido e ainda tem. Ao que diz João Pedro, quando colocam algum jovem na mesma empresa de limpeza “ele ajuda, dá uma mão, tenta orientar um bocadinho”.

Quando se lhe pergunta se acha importante ajudar outros ex-acolhidos em lares de infância e juventude, responde “sim, sim”. Porquê? “Também gostei de ser ajudado.” De que se orgulha? “De ser o que sou hoje.” João Pedro aquiesce. “Tens motivos para isso.”

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