Embaraços e urgências legislativas. História de um suicídio politicamente assistido

Esta proposta legislativa não foi assim tão discutida na sociedade portuguesa: nem para os decisores políticos estão claras as condições basilares para a morte medicamente assistida.

O Presidente da República vetou o decreto da Assembleia da República n.º 199/XIV, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível, ou seja, a despenalização da antecipação da morte, a lei sobre eutanásia e suicídio assistido.

Confesso que fiquei surpreendido. Mas a minha surpresa explica-se pelo facto de, quando soube (como a maioria dos portugueses a posteriori) do envio do diploma para a Presidência da República, me ter limitado a consultar o novo artigo 2.º, onde constam as definições de um conjunto de conceitos, entre os quais o de “lesão definitiva de gravidade extrema”, solicitada pelo Tribunal Constitucional. Por isso mesmo, não me apercebi de que teriam sido introduzidas alterações no artigo 3º. Falha minha, ainda que não se perspetivasse essa necessidade.

Ora, como bem faz notar o Presidente, dessas alterações resultaram contradições no conceito de “doença grave ou incurável” que anteriormente era “doença grave e fatal”. Esta alteração, se mal interpretada (o que não se afigura difícil), poderia levar a uma alteração das condições da morte medicamente assistida que poderia ser levada a cabo em qualquer pessoa que sofresse “apenas” de uma doença grave que poderia não ser incurável e muito menos fatal.

Não acredito, sinceramente, que essa fosse a intenção do legislador. Penso tratar-se de um lapso, que ainda assim terá que ser considerado inaceitável e que apenas se poderá explicar (não compreender) pela urgência em legislar. Urgência essa que levou a Assembleia da República (AR) a dispensar ouvir o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida o que, arrisco dizer, se o tivesse feito, poderia ter evitado este embaraço.

Contudo, já em relação ao outro argumento utilizado pelo Presidente da República para explicar a sua decisão a minha opinião é diferente. Questiona Marcelo Rebelo de Sousa se de facto a Assembleia da República quer renunciar à exigência da doença ser fatal e, em caso afirmativo, por que motivo teria alterado a sua posição nos últimos nove meses. E até uma resposta é sugerida, se essa alteração se deveria à aprovação da legislação em Espanha.

Na verdade, a AR não alterou a sua posição. Desde o início deste processo esteve claro na proposta legislativa que a exigência para a realização da morte medicamente assistida não passava apenas pela doença fatal (leia-se doença que evolui para a morte), mas poderia também acontecer, nas mesmas condições, para pessoa com lesão definitiva de gravidade extrema, que por força da razão, não é fatal. Sempre me preocupou esse facto, sobretudo porque sempre considerei que a aceitar essa possibilidade, tal como acontece em outros países europeus onde de facto se inclui agora a Espanha, as condições de antecipação da morte deveriam ser diferentes. Pelo mínimo, deveria ser considerado um tempo de reflexão diferente para as pessoas que sofressem de doença fatal, progressiva e incurável em relação às pessoas que sofressem de lesão definitiva de gravidade extrema, por serem processos bem diversos do ponto de vista de adaptação à própria doença e da evolução do desejo de morrer.

Enfim, que este resultado nos faça a todos compreender que: 1) a pressa não pode ser nossa amiga em processos de tamanha responsabilidade e complexidade; 2) porventura, ao contrário do que tantas vezes se tem dito, este tema e esta proposta legislativa não foram assim tão discutidos na sociedade portuguesa, quando se percebe que as condições basilares para a realização da morte medicamente assistida não estão claras nem para os nossos decisores políticos; 3) com o tempo que necessariamente agora teremos, aproveitemos a oportunidade para desenhar uma legislação inovadora, adaptada à realidade portuguesa, e orientada pelo conhecimento que as ciências psicológicas já produziram sobre a forma como a tomada de decisão no contexto do desejo de morrer normalmente evolui.

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