Veto para fazer “a sua vontade”, veto “cínico”, veto sem “motivos objectivos” — a decisão de Marcelo vista por quem aprovou a lei da eutanásia

Marcelo devolveu ao Parlamento, sem promulgação, o decreto que descriminaliza a morte medicamente assistida. Será a nova Assembleia da República que sair das eleições de 30 de Janeiro a decidir sobre o processo.

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O Presidente da República voltou a veter a lei da eutanásia LUSA/AMPE ROGÉRIO

O Parlamento aprovou, a 5 de Novembro, o decreto que descriminaliza a morte medicamente assistida, mas a larga maioria dos 138 votos a favor não foi suficiente para que o diploma passasse no crivo de Belém. O Presidente da República anunciou o veto segunda-feira à noite, a que se seguiu um conjunto de reacções dos partidos, com a esquerda a criticar a opção de Marcelo Rebelo de Sousa.

A deputada socialista Isabel Moreira, autora do decreto da eutanásia, considerou nesta terça-feira que o Presidente “utilizou pretextos” para “fazer aquilo que era a sua vontade” ao vetar o diploma, defendendo que as suas dúvidas poderiam ter sido esclarecidas pelo Tribunal Constitucional. “Penso que o PR utilizou basicamente pretextos que não impediriam uma boa interpretação da lei para fazer aquilo que era a sua vontade, e a sua vontade - que é uma vontade que eu entendo que é pessoal - é de impedir que esta lei seja aprovada”, referiu Isabel Moreira em declarações à agência Lusa.

A deputada indicou que, no seu entender, a “forma como o veto está formulado na sua fundamentação” cria uma “situação atípica”, dado que, apesar de ser um “veto político”, está “recheado de preocupações jurídicas que usualmente seriam apresentadas junto do Tribunal Constitucional”. Abordando aquela que considera ser a “crítica substancial” de Marcelo Rebelo de Sousa ao diploma – designadamente a ideia de que, segundo consta na nota da Presidência da República, entre a primeira versão do diploma e a segunda, houve uma “mudança considerável de ponderação dos valores da vida e da livre autodeterminação” –, Isabel Moreira disse que se trata “de uma análise jurídica e não política” e que são “questões que são usualmente levantadas junto do Tribunal Constitucional e não da Assembleia da República”.

Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, já tinha reagido no Twitter ao veto presidencial da eutanásia, considerando que se trata de um veto “cínico”. O dirigente bloquista avisou que não será o “cinismo presidencial” a ter a última palavra. “A eutanásia será legal mais cedo do que tarde”, acrescentou o líder parlamentar do Bloco. O também deputado do BE José Manuel Pureza classificou como “totalmente incompreensível” a posição e “a argumentação” do Presidente da República para “vetar” o diploma. “O Presidente da República já tinha suscitado a questão da inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional teve ocasião de identificar com rigor as normas que precisavam de ser clarificadas e o Presidente da República vem utilizar uma suposta diferença de conceitos”, apontou, em declarações à CNN Portugal. “Em bom rigor é uma posição de convicção por parte do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, que tem todo o direito de não querer, mas não creio que este detalhe jurídico seja valido para justificar o veto”, acrescentou.

O PS e o BE foram dois dos partidos que votaram a favor do diploma da eutanásia. A estes partidos juntou-se o PAN, o PEV, a IL, as duas deputadas não-inscritas e 13 deputados do PSD. 

Tendo estado a favor, a deputada Bebiana Cunha, do PAN, disse em declarações à TSF, ter uma ideia precisa sobre a natureza do veto presidencial. E essa ideia pode ser traduzida na fórmula ‘veto político’. “Aquilo que nós procuramos fazer em grupo de trabalho, na sequência do veto anterior, do senhor Presidente, foi precisamente clarificar a questão da doença incurável e deixar, de forma bem clara, que estávamos perante situações muito específicas, muito próprias, de um sofrimento atroz e de uma decisão consciente”, afirmou.

O deputado do PEV José Luís Ferreira considerou que o Presidente da República vetou o decreto da eutanásia influenciado por “convicções pessoais”, uma vez que não havia “motivos objectivos” para impedir a promulgação. “'Os Verdes’ lamentam e foi com alguma estranheza que tomaram conhecimento da decisão do PR”, disse à agência Lusa o deputado ecologista, na Assembleia da República. José Luís Ferreira recordou que quando o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre o decreto, “apenas limitou as suas reservas a dois conceitos que considerou serem indeterminados ou vagos”, mas “também deixou claro que o próprio conceito não estava em causa”.

Embora tenha votado contra a lei no Parlamento, o PCP foi crítico da decisão do Presidente. O deputado comunista António Filipe sustentou que o Presidente da República colocou “problemas circunstanciais” sobre as formulações utilizadas quando vetou o diploma da eutanásia, acrescentando também ele que o processo terá de recomeçar na próxima legislatura. “As razões que levaram o PCP a votar contra a provação desta lei de legalização da eutanásia não são as que são colocadas pelo Presidente da República”, afirmou António Filipe à Lusa. “O PCP, na exposição das suas razões, não se prendeu com formulações. Prendeu-se, de facto, com aquilo que considera que é uma posição de fundo por parte do Estado e do legislador perante a questão que foi suscitada”, explicou.

O veto visto à direita

Desta vez, com uma posição contrária à da restante direita, a IL disse, em comunicado, que esta decisão “trata-se de um veto político”, em que o Presidente da República “tenta disfarçar com dúvidas jurídicas que a IL não partilha, porque a redacção final do diploma não altera as exigências formais anteriormente previstas”. “A Iniciativa Liberal esteve neste processo em coerência com o seu programa político e continuará a contribuir com propostas próprias sempre que se discutam matérias que digam respeito à Dignidade Humana e a Liberdade Individual”, acrescenta.

Quem não fez qualquer comentário foi a direcção do PSD, até porque Rui Rio deu liberdade de voto aos deputados e estes votaram divididos. 

Já a porta-voz do CDS-PP lamentou que a Assembleia da República se empenhe na despenalização da eutanásia em vez de garantir melhores acessos a cuidados paliativos. Cecília Anacoreta Correia reconhece que o CDS tem uma objecção política de fundo contra a eutanásia, ao mesmo tempo que assume satisfação com o veto do Presidente. “A alternativa a sofrer não é morrer. A alternativa ao sofrimento é cuidar, é tratar de quem está doente e o CDS quer um estado humanista, que conforte e que lute por condições dignas”, sustentou Cecília Anacoreta Correia.

O Chega emitiu um comunicado em que se congratula a decisão do Presidente da República: “O decreto, elaborado à pressa para ser aprovado pela maioria de esquerda que actualmente domina o Parlamento, apresenta várias lacunas e contradições, mostrando uma clara falta de respeito pelo exercício de legislar que se quer sério, responsável e ponderado.”

Ainda na noite de segunda-feira, o secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Tiago Antunes, afirmou que o próximo Parlamento terá que encontrar soluções para responder às questões que levaram o Presidente da República a não promulgar na noite segunda-feira o decreto sobre a morte medicamente assistida. Em declarações à CNN Portugal, lembrou que o Tribunal Constitucional já se tinha pronunciado “dizendo que havia questões onde a lei tinha de ser mais determinada” e considerou que a Assembleia da República “fez um trabalho no sentido de determinar esses conceitos”. “O Presidente da República entende que esta determinação não é suficiente. O próximo Parlamento terá de trabalhar esse aspecto”, disse ainda. Com Lusa

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