A verdade da história do Café Martinho da Arcada – I

O Martinho da Arcada já não existiria, não fosse este movimento. E foi lembrando sobretudo o empenho dos meus alunos do 11.º ano de Electricidade, da Esc. Sec. Marquês de Pombal, bem como o seu interesse e afeição por Fernando Pessoa, que decidi escrever este artigo.

Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim gente que me “compreenda”, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado.
Fernando Pessoa/Bernardo Soares,
Livro do Desassossego

NOTA PRÉVIA: O artigo é longo, mas a verdade da história do Café Martinho da Arcada, entre 1984 e 1985, exigiu-o, agradecendo ao Público, o meu jornal de leitura diária, ter aceitado receber o testemunho que espero, a partir de agora, seja respeitado. Com efeito, o Martinho já não existiria, não fosse este movimento. E foi lembrando sobretudo o empenho dos meus alunos do 11.º ano de Electricidade, da Esc. Sec. Marquês de Pombal, bem como o seu interesse e afeição por Fernando Pessoa, que decidi escrevê-lo, não podendo deixar também de registar os nomes dos que, a dado momento, “só pensavam em salvar o café pessoano”: António Aires Vasconcelos, Artur Anjos, Cristina Maria Barbosa, Licínio Menezes de Assis, Mário Humberto Oliveira, Paulo Jorge Malícia e Rui Manuel da Fonseca.

“Nós, um grupo de alunos do 11.º ano de Electricidade e a sua professora de Português, da Escola Secundária Marquês de Pombal, assim como os abaixo-assinados, vimos chamar a vossa atenção para um facto que consideramos atentatório do património Cultural da cidade de Lisboa.    

Tomámos conhecimento por intermédio da imprensa que o Café Martinho da Arcada corre o risco de ser transformado em moderno self-service, alterando por completo a sua fisionomia interior.

O facto de estar integrado num conjunto arquitectónico que remonta ao séc. XVIII e sendo um dos mais antigos cafés de Lisboa, urge classificar o seu interior como pertencendo ao Património Nacional, impedindo assim que nele sejam introduzidas alterações significativas.

Uma das razões que nos levou a defender a preservação do referido café foi o facto de termos estudado Fernando Pessoa ao longo de quatro meses, o que nos levou a descobrir diversos espaços que fizeram parte do seu quotidiano. Um desses espaços foi precisamente o Café Martinho da Arcada.

Comemorando-se neste ano o cinquentenário da morte de Fernando Pessoa, não seria esta uma maneira de prestar Homenagem àquele que é justamente considerado um dos maiores poetas europeus contemporâneos?

Esperamos que este nosso apelo não seja ignorado por quem tem o dever de defender os nossos valores históricos, arquitectónicos e culturais.”

Eis, na íntegra, o texto da Carta-Aberta, escrita em aula e dirigida aos Ministros da Cultura e da Educação, ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e à População em geral, no mês de Março de 1984. Abraçávamos então uma causa, numa cumplicidade convicta, nascida do percurso pessoano por Lisboa em cujas ruas deambulámos, lendo versos do poeta múltiplo e parando nos espaços que considerávamos mais expressivos, em conjugação com a sua obra, ortónima e heterónima, e inúmeras cartas: Largo de São Carlos, Largo do Carmo, Brasileira do Chiado, Terreiro do Paço, Martinho da Arcada, Rua dos Douradores, Passos Manuel, Pascoal Duarte, Almirante Barroso, Coelho da Rocha, Jardim da Estrela, Hospital de São Luís dos Franceses. Procurávamos, no fundo, fazer parte da sua “família verdadeira”.

Foi no Martinho que conhecemos a D. Albertina Mourão, gerente do café, que nos confirmou as dificuldades financeiras na manutenção do espaço e a avidez de vários bancos, agradecendo-nos a iniciativa e pedindo-nos que não desistíssemos, dando início a uma amizade que se expressou também em cartas e em encontros regulares, na Pastelaria Ferrari, ao longo de anos. Na Rua Coelho da Rocha, entrámos no n.º 16, 1.º Dt.º, e seguindo a D. Joana Barradas, que num gesto hospitaleiro nos abrira a porta, andámos pelo espaço que, estando habitado e praticamente inalterado, nos deu a possibilidade de recriar o ambiente em que o poeta vivera. Deste nosso encontro daria D. Joana Barradas conta ao jornalista José Jorge Letria (O Diário, 17.1.85).

Na mesma rua, estivemos com o Sr. Trindade e o Sr. Manassés, encontrando-se ambos já bastante doentes, o que não os impediu de falar connosco, agradavelmente surpreendidos pela visita de alunos que retiveram o carinho e o respeito com que ambos se referiam ao “Sr. Fernando Pessoa”. Recordou o primeiro, dono da “Leitaria Trindade”, o que já soubéramos por João Gaspar Simões, ou seja, a rotina diária do “2, 8 e 6” que descodificada significava: “uma caixa de fósforos (20 centavos), um maço de cigarros (80 centavos) e um Macieira (60 centavos).”; o Sr. Manassés, barbeiro do poeta, mais visivelmente condoído com “a solidão do Sr. Pessoa” que se espelhava no espaço onde vivia, conforme nos disse.

Este percurso pessoano iria prolongar-se num longo processo que, lamentavelmente, tem sido muitas vezes ignorado, falseado ou confundido, e que se desdobrou em objectivos vários, que atempadamente desenvolverei neste jornal: “classificação de interesse público para o interior” do velho café (1984-1985), criação da Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA, 1986) e a sua dinamização cultural (1986 a 1988), organização do Concurso Internacional de Arquitectura, tendo em vista a recuperação do Martinho (1987) e, finalmente, a tentativa, vã, de resolver a polémica causada, logo após a sua reabertura, em 1990, devido ao não-cumprimento do estipulado no projecto do Arq. Raúl Hestnes Ferreira, vencedor do referido concurso.

Todo este processo, cuja documentação possuo, encontra-se registado e documentado, infelizmente em alguns casos sem o mínimo de rigor, no MC e no ME, na CML, no Instituto Português do Património Cultural (IPPC), agora Instituto Português do Património Arquitectónico, na Assembleia da República, na Ordem dos Arquitectos e em toda a Comunicação Social (Jornais, Rádio e Televisão). Nunca uma iniciativa foi tão acarinhada e persistentemente apoiada, como a defesa do Martinho cuja avidez de bancos e outros tanto ameaçaram. Vimo-lo e sentimo-lo em toda a sociedade que subscreveu e divulgou o texto, na comunicação social que nunca abandonou o desenvolvimento e a análise crítica dos factos que iam ocorrendo; na classe intelectual que não traiu a sua responsabilidade cultural e na própria Assembleia da República que, reunindo connosco e elaborando pareceres favoráveis, soube honrar a palavra dada, intervindo junto do MC.

São muitos os que já não se encontram entre nós, mas, relembrando esta história, voltamos de novo a encontrar-nos. Espécie de álbum de fotografias que perdura no tempo, não deixando apagar a memória. E, nesse sentido, não poderei deixar de descrever a forma como se processou a recolha de assinaturas, não facilitada por computadores e assinaturas digitais. Eram solicitadas “porta a porta”, indo a diferentes escolas, teatros, cinemas, cafés, jornais, rádio e televisão, ou contactando entidades culturais, por escrito, por telefone ou in loco, cujos endereços conseguíamos saber,​ que por sua vez nos encaminhavam para outros assinantes, prontificando-se igualmente a recolher mais nomes. Combinávamos depois o dia em que passaríamos a buscá-las e foi assim que Mário Viegas (Teatro Aberto) e José Alberto Gil (Marionetes de São Lourenço) nos entregaram uma mão-cheia de assinaturas de actores; José Blanco e Pedro Tamen, a Gulbenkian em peso; Vasco Wallenkamp, o mundo da dança; Alçada Baptista e Agostinho da Silva, um sem-número de escritores, os diferentes jornais, para além da rádio e da televisão, dezenas e dezenas de folhas preenchidas, não esquecendo a avalancha de gente anónima que se prontificou a ajudar na recolha, incluindo os oito empregados do velho café.

Será justo referir os nomes dos jornalistas que, solidários com a iniciativa, nunca interromperam a informação sobre os vários passos que iam sendo dados: Diário Popular, Paulo Luís de Castro, Baptista Bastos, Rodrigues da Silva, Jacinto Baptista; Diário de Lisboa, Pedro Alvim, Rogério Vidigal, Nuno Ribeiro, Marina Tavares Dias; Diário de Notícias, Jorge Peixoto; Diário, José Jorge Letria; A Capital, João Vaz; Correio da Manhã, Anabela Natário; Expresso, Teresa Schmidt, Francisco Belard, Rui Cabral, Orlando Raimundo; Semanário, José Sousa Machado; O Jornal, Pedro Vieira, Daniel Ricardo; Jornal de Letras, Inês Pedrosa; O Dia. Na Rádio, Natália Carvalho, RDP 2; Rui Pedro, Joaquim Furtado, Hermano Manuel, RDP 1; Maria José Mauperrin, Rádio Comercial; Raúl Marques, Lusa. Na RTP, Júlia Fernandes.

O trabalho de recolha de assinaturas requeria muitas horas e era após as aulas e aos fins-de-semana que nos organizávamos, num esquema de tal modo extenuante que vários encarregados de educação se queixaram ao Conselho Directivo da escola pelo facto de os seus educandos só “pensarem na disciplina de Português e em salvar o café pessoano”. A Carta-Aberta exigia igualmente que nos encontrássemos com deputados da AR, nomeadamente José Manuel Mendes e José Magalhães (PC), Leonel Fadigas (PS), Hasse Ferreira e Lopes Cardoso (UEDS), Corregedor da Fonseca (MDP), José Augusto Seabra, Fernando Condesso, Manuel Vilhena de Carvalho (PSD), Magalhães Mota (ASDI), Gomes de Pinho e Basílio Horta (CDS), ou ainda com vereadores da CML, Rui Godinho (APU), Pombo Cardoso (PS), Lívio Borges (PSD), Clotilde Silva (CDS). Outras vezes, era apenas eu que, em nome do grupo, me encontrava com dirigentes de instituições várias com o único intuito de apoio e de mais assinaturas. Relembro, entre outras, a Sociedade de Língua Portuguesa, Fernando Sylvan; Sociedade Portuguesa de Autores, António Reis e Luís Francisco Rebelo; Centro Nacional de Cultura, Maria Helena Vaz da Silva; Sociedade Nacional de Belas-Artes, José Augusto Pereira; Associação de Arquitectos, Michel Toussaint; Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, David Mourão-Ferreira; Sindicato dos Trabalhadores dos Espectáculos, Emília Rosa (Miló); Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Vasco Graça Moura; Instituto Português do Livro, António Alçada Baptista; Instituto Português de Cinema, Justina Franco Basto; Museu da Cidade, Irisalva Moita; Teatro de São Carlos, João de Freitas Branco e João Pereira Bastos; Centro de Estudos Pessoanos, Arnaldo Saraiva.

A primeira notícia sobre a Carta-Aberta, entregue uns dias depois, com cerca de 2500 assinaturas, aos órgãos de soberania visados, foi a 30 de Março de 84, no Diário Popular, “Martinho da Arcada: A Ameaça dos Tempos”, seguindo-se igual informação, noutros jornais, ao longo da primeira quinzena de Abril. Todos mencionavam muitos dos subscritores: Lagoa Henriques, Fernando de Azevedo, Rui Mário Gonçalves, José de Guimarães, Emília Nadal, Graça Morais, Pedro Vieira de Almeida, António Palolo, Maria Judite de Carvalho, Fernando Sylvan, Eunice Muñoz, João Mota, Carlos Wallenstein, Jorge Trincheiras, António Reis, Jorge Listopad, Germana Tânger, Vasco Graça Moura, José Blanco, Pedro Tamen, Celestino Portela, José Hermano Saraiva, Joel Serrão, David Mourão-Ferreira, Eduardo Prado Coelho, António Quadros, Óscar Lopes, Arnaldo Saraiva, Miguel Yeco, José Pereira da Costa, Jacinto Ramos, Rui de Carvalho, Luís Miguel Cintra, Wanda Ramos, Mário Viegas, Irene Cruz, Maria Antónia Fiadeiro, Jorge Molder, Jorge Martins, Fernando Condesso, Manuel Vilhena de Carvalho, José Manuel Mendes, Jorge Lemos, Luís Filipe Costa, António-Pedro Vasconcelos, António Lopes Cardoso, Joel Hasse Ferreira, António Gomes Pinho, António Macedo, Carlos Lage, Paulo Rocha, Vitorino, Carlos do Carmo, Morais e Castro, Vasco Wallenkamp, António Alçada Baptista, João Botelho, João Gaspar Simões, Paulo Nozolino, Ricardo Pais, Luiza Neto Jorge, Luís Lucas, Sérgio Pombo, Luís Madureira, Alberto Pimenta, São José Lapa, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Dacosta, José João de Brito.

A 17 de Abril, A Capital e muitos outros jornais noticiavam que na reunião camarária, de dia 16, fora aprovada, por unanimidade, uma recomendação da APU, solicitando ao MC a classificação do interior do Café Martinho da Arcada, sendo deliberado igualmente não licenciar quaisquer alterações no local, informação que recebera também do vereador Pinto Machado. Entretanto, sabendo que a nossa acção deveria continuar viva para que o assunto não se alterasse entre diferentes gabinetes, o que algumas vezes aconteceu e até com movimentações contrárias à palavra que nos havia sido dada, fizemos “um autêntico lançamento de comemorações do cinquentenário da morte de Fernando Pessoa […] afixando um conjunto de cartazes” (A Capital, 28.11.1984) de cariz pessoano, no Martinho, na Brasileira e no Largo de São Carlos, desenhados por um jovem pintor suíço, André Froidevaux. Com os apoios da CML, do FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) que ofereceu serigrafias dos cartazes, num belo trabalho de João Kadic, e do Palácio Foz, que ofereceu o espaço, concretizámos a pequena exposição de serigrafias, desenhos e texto sobre Pessoa, visitada pelo público em geral, e escolas em particular. O acontecimento foi divulgado também amplamente no Diário de Lisboa (Pedro Alvim, 6.11.84) e no Diário Popular (Paulo Castro, 5.12.84), bem como em pequenas notícias noutros jornais.

Num volte-face repentino, a CML, ao arrepio do aprovado por unanimidade a 16 de Abril de 1984, atribuiu, em 1985, “a classificação de interesse concelhio” ao interior do Martinho, baseando-se num mal-entendido (para não ir mais longe) com o MC. Uma classificação que obviamente em nada o protegia ou não fosse a experiência dar-nos conta das contínuas anulações deste tipo de classificação. A esperança que vivíamos deu lugar ao pesadelo e o extraordinário foi que não desistimos e voltámos à carga, escrevendo ao MC (25.3.85) e recebendo novamente o apoio de todos os jornais, do vereador Rui Godinho, do arquitecto do IPPC, Mota Carneiro, que estudava o processo de classificação de interesse público do interior do café, bem como dos deputados com quem reuni, de que destaco a reacção indignada de Manuel Alegre que me garantiu ir escrever ao ministro da Cultura. A 11 de Abril 85, entre outros jornais, o Diário de Notícias revelava o que nós já sabíamos. Os deputados Manuel Alegre (PS), José Augusto Seabra (PSD), Lopes Cardoso (UEDS), Basílio Horta (CDS), José Manuel Mendes (PCP), Magalhães Mota (ASDI e João Corregedor (MDP) haviam requerido ao MC a classificação de “interesse nacional” do café e que se prevenisse “qualquer processo visando a sua desfiguração”.

E a boa nova, já telefonicamente conhecida, foi noticiada pelo Diário de Lisboa, a 11.5. 85, “Ministro da Cultura disse ‘sim’ à defesa do Martinho da Arcada”. Recebi depois, oficialmente, uma carta do IPPC, datada de 16 de Maio 85, e assinada por João Palma-Ferreira. Termino o artigo, transcrevendo o conteúdo da referida carta, resposta à que eu escrevera a 25.3.85, desejando que a partir de agora não se repitam os erros costumeiros de ignorância ou silêncio relativamente à verdade dos factos:

Em referência à carta em epígrafe, informo V. Ex.ª de que, por despacho de 24 de Abril, de Sua Excelência o Ministro da Cultura, foi determinada a alteração da classificação como valor concelhio do interior do imóvel, para a classificação como Imóvel de Interesse Público do próprio estabelecimento em si, na sua globalidade exterior e interior.”

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