Acabar com os “acidentes” da violência rodoviária

Hoje, 21 de Novembro, assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Estrada. Temos que questionar seriamente se o que acontece todos os dias nas estradas portuguesas cabe na categoria “acidente”. É como se, todos os anos, as cerca de 600 mortes e os largos milhares de feridos que decorrem da violência rodoviária fossem impossíveis de evitar.

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Nelson Garrido

“Morto em despiste em Coimbra”,"Seis feridos em choque na EN259”, “Carrinha arde após embate na A17”, “Carro capotou e galgou separador no acesso da A3 para a VCI”, “Quatro feridos e caos na Circunvalação”, “Acidente entre dois carros na A3 faz um ferido”, “Dois irmãos morrem em colisão entre carrinha e camião. Tragédia em Abrantes causa 7 feridos”.

O que é que estas frases têm em comum? Em primeiro lugar, são cabeçalhos do Jornal de Notícias da última semana. E em segundo, todos têm a palavra “acidente” antes do texto da notícia. Convém relembrar a definição de “acidente": “acontecimento casual inesperado; incidente nefasto provocado de forma não intencional”, segundo a Infopédia. As expressões “inesperado” e “não intencional” apontam para algo em que ninguém foi responsável e que seria difícil de evitar.

O que é que nos vem à cabeça quando pensamos em “acidentes"? Expressões como: “foi apenas um acidente” ou “os acidentes acontecem”. Quando o resultado foi difícil de prever, e onde os intervenientes não tiveram responsabilidades de maior sobre o seu desfecho nefasto. No fundo, uma tragédia.

Hoje, 21 de Novembro, assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Estrada. Temos que questionar seriamente se o que acontece todos os dias nas estradas portuguesas cabe na categoria “acidente”. É como se, todos os anos, as cerca de 600 mortes e os largos milhares de feridos que decorrem da violência rodoviária fossem impossíveis de evitar. É uma desresponsabilização completa de quem conduz, mas também de quem gere as nossas ruas, estradas e leis. 

Já há anos que associações como a Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) e a Associação de Cidadãos Auto-mobilizados (ACA) apelam para que instituições públicas e meios de comunicação social deixem de usar o termo. Como explica a ACA, é preciso averiguar as causas para perceber se o que aconteceu foi mesmo um acidente, ou se poderia ter sido evitado por diferentes condutas dos intervenientes. Há ainda a perspectiva estrutural: o desenho urbano, a legislação e fiscalização.
Como diz o alcaide de Pontevedra, os radares de velocidade, embora úteis para punir e fiscalizar, “se alguém passa a 100 e mata uma pessoa, não nos resolvem o problema”.

O espaço rodoviário tem que ser desenhado de forma a minimizar o risco. Está mais do que estudado que o aumento de velocidade aumenta o risco de mortes e de feridos. Assegurar que a velocidade é compatível com a vida humana em caso de colisão (menos de 30km/h) é uma medida básica a tomar nas zonas urbanas. Por isso em Pontevedra se constroem passadeiras elevadas, quase todos os dias, desde há 20 anos. Na Holanda esta abordagem é vista como segurança sistémica, e leva a que haja em todo o lado passadeiras elevadas, passeios contínuos e estreitamento de vias. Os centros das cidades são principalmente pedonais e de comércio. Nas ruas residenciais, há passeios, árvores, canteiros, bancos, estacionamento para carros e bicicletas, mas não costuma haver vias largas nem rectas. A rua é desenhada com curvas apertadas, graças a canteiros e bermas, e zonas elevadas, para que os automóveis tenham mesmo que abrandar e travar. E assim consegue-se que crianças brinquem em segurança em frente às suas casas. Apesar dos anos que lá vivi, só me comecei a aperceber da importância do desenho urbano quando voltei para Portugal. Lá, só sabia que me sentia segura de bicicleta e a pé, mas sem reparar porquê. 

Ao voltar para Portugal, e para Vila Nova de Gaia, o contraste foi gritante. Andar a pé nos passeios minúsculos ou inexistentes, com os veículos a passarem a poucos ou nenhuns metros de distância, a grande velocidade. Este ambiente rodoviário é hostil. Há uma violência latente. Não admira que muitas pessoas não deixem as crianças andar sozinhas. E mesmo assim não faltam casos de adultos, a pé ou de bicicleta, abalroados por despistes e distracções. O que nos leva ao ponto da fiscalização e legislação.

Uma reportagem recente da SIC focou-se em vários casos de ciclistas que morreram na estrada, abalroados. O mais chocante foi ver as penas imputadas aos automobilistas: uns poucos milhares de euros de multa e meia dúzia de meses sem conduzir. Os carros são caixas de metal de mais de uma tonelada. Ao embaterem numa pessoa a 70km/h é como se alguém caísse do sexto andar de um prédio. A 50km/h equivale a cair de três andares e a 30km/h, do primeiro andar. Como sociedade, temos que ter isto em conta quando desenhamos o espaço público, a linguagem, a cultura, as regras, as penas e a fiscalização. 

Talvez a tragédia não seja a violência rodoviária per se, mas a total falta de vontade política para pôr a vida das pessoas em primeiro lugar. No entanto, tal como os “acidentes”, isto não é inevitável. A vontade política aparece se mudarmos a narrativa, se nos organizarmos e fizermos pressão. Por isso estaremos hoje em vigílias em vários pontos do país (no Porto será às 14h30, no Marquês). Por isso foi lançada uma petição pela Estrada Viva para que o limite de 30km/h seja implementado em zonas urbanas. Tal como muitos outros problemas em Portugal (e no mundo), a violência rodoviária pode ser combatida eficazmente. Basta que as pessoas se organizem, procurem soluções e exijam que quem tem poder o use seriamente para o bem comum.

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