O bacalhau dá para tudo – até para provas verticais

Setenta convidados tinham, num prato, cinco porções de bacalhau Vintage Lugrade, a mais antiga com 72 meses de cura. No final, parece que a colheita de 2020 levou a melhor. Numa iniciativa inédita em Portugal foi possível sentir que, em matéria de bacalhau, ainda há detalhes por afinar.

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Os irmãos Joselito e Vítor Lucas, administradores da Lugrade, meteram na cabeça que essa história de “para quem é bacalhau basta” é um insulto ao peixe, um insulto a quem o apanha e um insulto a quem o cura com esmero no sal. No fundo, um insulto aos portugueses. Vai daí, organizaram uma prova vertical de bacalhau, à laia do que se faz no mundo do vinho. Pegaram em cinco edições do bacalhau Vintage Lugrade (com curas prolongadas entre 2017 e 2021) e serviram-nas a clientes, amigos, chefs e jornalistas. Propósito: perceber se o tempo de cura é ou não uma mais-valia para o bacalhau.

Se no universo do vinho este tipo de prova é recorrente, em matéria de bacalhau nunca se viu nada assim, pelo que as dúvidas cresciam à medida que o perfume do peixe confitado chegava aos narizes. O que se pretende numa prova de bacalhau? Quais são os itens de avaliação? Que ponderação damos ao aspecto, à cor, ao aroma, ao teor de sal, à gordura, à textura ou ao sabor? Pior: como se avalia um bacalhau que nos chega ao prato com 72 meses de vida?

O mais próximo que estivemos de uma prova destas foi nos arredores de Santander, há uns anos, quando, por pura casualidade e em modo de penetra com descaramento, entrámos numa sala onde estavam uns tipos debruçados sobre anchovas de conserva com diferentes anos de cura. Depois de alguma conversa, conseguimos acompanhar a avaliação estética de cada filete, mas, na prova de boca, afocinhámos. O que para nós parecia um filete de biqueirão com sabor complexo e textura suave (a léguas daquilo que se encontra por cá em latinhas de 3 ou 4 euros), era, para os doutores das anchovas, qualquer coisa entre a criação poética e o discurso de um perfumista parisiense. Muito triste é a ignorância.

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Em tese, devíamos saber avaliar bacalhau como os da Cantábria sabem avaliar anchovas. Mas isso é só em tese. Para nós o bacalhau é bom, é mais ou menos, ou é mau. Salgado ou deslavado. Fibroso ou suculento. E não passamos disto. Nem curiosidade temos pela origem, modo de captura ou tempo de cura do peixe.

A edição limitada Vintage, da Lugrade, resulta da selecção de exemplares de gadus morhua provenientes da Islândia, da baía de Keflavik (atenção ao pormenor), capturados em redes de emalhar entre Fevereiro e Março, altura em que os peixes estão mais gordos. Para a edição de 2021, são só 5 mil exemplares.

O bacalhau da Islândia é outra loiça, porque os cardumes vivem quase todo ano junto à grande ilha, em virtude da abundância de alimento. Este sedentarismo contribui para a acumulação de gordura na estrutura muscular dos peixes. E, como se sabe, gordura é sabor.

Claro que em todo este processo – e no caso da Islândia – conta muito o relacionamento que se estabelece entre a família que apanha e transforma o peixe e a família que o recebe em Portugal, de forma a garantir matéria-prima de qualidade. A família Lucas tem, há anos, uma parceria com a família de Hólmgrímur Sigvaldason, naquela base formal do aperto de mão. Contratos é coisa que não existe. “Há três anos, fomos todos à Islândia. E, no final da visita, Hólgmgrímur ofereceu-nos uma rocha islandesa com os símbolos das duas empresas, gravados com alguns metais precisosos, entre eles ouro que havia sido fundido a partir de joias da sua família. Temos a pedra em destaque na fábrica, e por vezes, quando olho para ela tenho de disfarçar a emoção”, conta Joselito Lucas.

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Uma vez na Lugrade, em Coimbra, a 5 mil quilómetros de distância da ilha vulcânica, os peixes são submetidos a uma cura de 20 meses de sal, dando origem ao Lugrade Vintage, que é, por assim dizer, o produto premium da casa.

De 2017 a 2021 vão cinco edições de Lugrade Vintage. Quando os irmãos Lucas se aperceberam do sucesso comercial da primeira edição limitada, decidiram guardar alguns exemplares em câmaras de frio, entre 2 e 4 graus, com níveis de humidade à volta dos 65 por cento, já com a ideia de, mais tarde, fazerem a tal prova vertical. Coisa que aconteceu esta semana, com a degustação dos bacalhaus confeccionados da mesma maneira. Isto é, confitados em azeite e cebola.

Para contrariar a velha tese de que há ideias originais que não são boas e ideias boas que não são originais, aqui pode dizer-se que a ideia da Lugrade foi original, boa, mas – isto da comida tem que se lhe diga – algo inconclusiva, no sentido em que, do nosso ponto de vista, não se pode dizer, com rigor, que uma colheita era claramente superior à outra.

Se o tempo prolongado com o sal acaba por dar maior firmeza muscular ao peixe, a colheita de 2017 foi a que se mostrou naturalmente mais tensa e sem qualquer excesso de salinidade. Aliás, e ao contrário de uma ideia pré-concebida, à medida que nos aproximamos das edições recentes, mais sal sentimos. Mais sal e, também, mais gordura – o famoso colagénio que bom sabor dá às lascas. Donde, é possível que, para colheitas recuadas, haja necessidade de se acrescentar sal no momento da confecção.

Ainda assim, numa sondagem à volta dos pratos (se falharmos, não estaremos sós na falta de rigor da técnica) ficamos com a ideia de que se alguma colheita deu mais que falar foi a de 2020, que se vendeu no Natal passado. Textura perfeita, lasca a decompor-se com um toque do garfo, sal no ponto e gelatina saborosa. Agora, tal deve-se ao peixe em si (uns têm mais gordura do que outros) ou ao tempo de cura (doze meses de sal mais outro tanto de repouso na câmara)? Será este o tempo indicado para um bacalhau de excelência ou foi simplesmente um acaso? Não sabemos. E não será seguramente com uma única prova que vamos encontrar respostas à prova de bala. Ainda por cima, a sala ruidosa, as garrafas de vinho do primo Carlos Lucas voando sobre os presentes – alguns merecedores de prova atenta – e cada cabeça a botar a sua sentença, tudo isso retirou a concentração no trabalho. Verdade que a noite era de festa e foi bom rever amigos, mas se os doutores de Santander vissem isto haveriam de dizer poucas e boas.

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Seja como for, a ideia da empresa da empresa familiar de Coimbra merece aplausos. Primeiro, porque criou este conceito de cura prolongada, segundo porque desenvolveu uma geringonça em forma de ioiô – o Fiel – que nos dá uma ajuda no processo de demolha e hidratação do bacalhau e, terceiro, porque arrisca num sector marcadamente conservador.

Não deixa de intrigar que uma indústria com um histórico tão longo e com um produto tão apreciado pela generalidade da população seja incapaz de criar novos produtos a partir de bacalhau salgado. Dá ideia que toda a criatividade da nação se esgotou nas míticas 1000 receitas para se preparar bacalhau. Por exemplo, com tanta variedade de azeite, com tantas ervas aromáticas e com uma enorme família de especiarias à mão, nem uma conserva de bacalhau ligeiramente atrativa se encontra por aí. Vai de meter bacalhau com grão, meio dente de alho, lascas de cebola e dois grãos de pimenta preta numa lata e não se fala mais nisso.

Portanto, se não fosse pedir muito, gostaríamos que os outros produtores de bacalhau olhassem para o exemplo da Lugrade e investissem qualquer coisa nos processos de inovação. Longe de nós metermo-nos com o tradicional bacalhau salgado seco, era só o que faltava. Mas, caramba, a tradição não se chateia com a inovação.

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