Reformar urgentemente a formação de professores em Portugal

Chegámos a um ponto de vulgarização deste tipo formação que se torna difícil saber o que é formação e o que é entretenimento.

Se a formação inicial está alojada no sítio correcto (universidades e politécnicos), a formação contínua dos nossos professores tem vivido numa espécie de caos logístico, sem nenhuma tentativa de limpeza do sistema por parte de nenhuma tutela, desde a década de 1990. Prevista na Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986, tem conhecido interpretações insustentáveis ao longo destes anos e julgo que a nossa situação arrisca ser um caso único no mundo, de criatividade formativa sem qualquer controlo de qualidade. Temos um regime jurídico da formação contínua de professores (Decreto-Lei n.º 22/2014), que a relaciona com a progressão na carreira, mas chegámos a um ponto de vulgarização deste tipo formação que se torna difícil saber o que é formação e o que é entretenimento.

Hoje, há entidades que oferecem formação contínua (?), sem que tenham sido criadas para esse fim. Uma síntese possível, por amostra, pode ser esta:

  1. Todas as formações podem ser creditadas pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua (CCPFC), uma entidade independente que serve para dar um selo que não é de qualidade mas de conformidade com os modelos pré-definidos;
  2. Os Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE), criados em 1992, acolhem múltiplos cursos de formação contínua. O controlo de qualidade da sua formação faz-se unicamente por inquéritos de satisfação dos seus formandos;
  3. As ordens profissionais também oferecem cursos de formação contínua de professores;
  4. O mesmo se pode dizer de sociedades científicas como a Sociedade Portuguesa de Matemática, que existe desde 1940, e que tem uma consolidada oferta de formação de professores;
  5. As associações profissionais de professores estão muito focadas na formação contínua, oferecendo muitas oportunidades e modalidades de formação;
  6. Os sindicatos de professores, que em qualquer parte do mundo servem para lutar por melhores condições de trabalho, em Portugal também interferem na formação de professores, oferecendo cursos a retalho e formação sem nenhum controlo de qualidade;
  7. A DGE também oferece formação contínua de professores, mesmo que a sua missão orgânica não preveja tal possibilidade e no passado estruturas como a DGEstE ou o IAVE também já ofereceram cursos de formação contínua de professores, contrariando a sua natureza jurídica;
  8. Há depois um conjunto de entidades privadas que se especializaram em cursos de formação contínua de professores, aproveitando a desregulação deste mercado, e também sem nenhum controlo de qualidade sério, oferecem de tudo um pouco, por exemplo:

Este quadro geral excêntrico é certamente único no mundo e os professores portugueses têm conseguido sobreviver neste estranho universo de formações díspares em termos de qualidade e de adequação às reais necessidades de aperfeiçoamento científico e pedagógico da classe docente.

Para podermos proceder a uma limpeza logística geral, seria necessária coragem para um conjunto de medidas disruptivas e correctivas, a saber:

  1. A formação contínua de professores tem estar no único sítio possível: o ensino superior (universidades e politécnicos), porque só aqui existem formadores altamente qualificados para garantir a qualidade da formação e a sua actualidade;
  2. De notar que as instituições de ES estão preparadas para aceitarem esse desafio de formação em massa, porque já são responsáveis pela formação inicial de professores e por toda a investigação em educação que se produz em Portugal, logo estão garantidas, por força dos mecanismos de controlo de qualidade exigentes dessa oferta de ensino e investigação, as condições ideais de formação;
  3. O Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua (CCPFC) é um órgão inútil, perfeitamente dispensável, uma vez esvaziado o seu nível de intervenção na acreditação de todos os tipos de oferta formativa universitária e não universitária;
  4. Os CFAE também deviam ser extintos, pois não têm recursos humanos altamente qualificados à altura da exigência científica da formação contínua nem têm qualquer ligação à investigação avançada em educação devidamente avaliada externamente como acontece no ES;
  5. O Decreto-Lei n.º 22/2014 e o Despacho n.º 779/2019 têm de ser totalmente repensados. A progressão na carreira dos docentes dos ensinos básico e secundário não pode ficar à mercê de formações avulsas, que não representem avanços no conhecimento nas diferentes áreas disciplinares, onde apenas conta a acumulação de horas de formação e não de verdadeiro conhecimento novo adquirido;
  6. A aquisição dos graus de mestre e de doutor tem de ser valorizada nas carreiras docentes como o ponto máximo de valorização - estas formações avançadas são avaliadas pela A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior) segundo padrões internacionais de grande rigor e exigência, que nem o CCPFC nem a DGE nem os CFAE podem alcançar; as formações intermédias (pós-graduações) são avaliadas pelos conselhos científicos das instituições de ensino superior, com muito mais rigor do que a avaliação do CCPFC e, portanto, tornando inútil a sua existência;
  7. Há hoje inúmeras parcerias e protocolos de cooperação entre instituições de ES e escolas do ensino básico e secundário que garantem que aquelas não vivem de costas viradas para estas;
  8. Temos de aproveitar a experiência de ensino a distância que a pandemia nos obrigou a todos a adquirir e apostar em formações criadas e geridas pelas instituições de ES capazes de chegar a toda a comunidade de professores. Se a Universidade Aberta teve um papel importante quando, num passado em que também tivemos uma necessidade nacional de profissionalização urgente de novos professores, foi necessário oferecer programas de profissionalização em serviço a distância e ainda existem em 2021 (ver aqui), hoje todas as instituições de ES portuguesas estão em condições de oferecer também formações a distância. Esta capacidade não pode ser ignorada e muito menos preterida à oferta actual conforme descrevemos em cima;
  9. Alargar aos professores do ensino básico e secundário o acesso à Rede de Ciência, Tecnologia e Sociedade (RCTS), que permitirá a todos os professores portugueses o acesso total a plataformas de videoconferência (Colibri), a plataformas de gravação de aulas (Educast) ou de ensino online (Nau);
  10. Nesse âmbito, a RCTS ofereceria novas ferramentas aos professores dos ensinos básico e secundário. Se estes receberam recentemente novos portáteis no programa da Escola Digital, urge igualmente alargar as condições que hoje existem no espaço do ES ao espaço das escolas básicas e secundárias: a rede Eduroam (Education Roaming) que tem por objectivo principal disponibilizar à comunidade académica um serviço de mobilidade de acesso gratuito e de qualidade à Internet em todo o espaço europeu.

É certo que todas estas medidas somadas podem representar uma ruptura demasiado grande com o sistema actual. Mas ou continuamos diariamente a queixar-nos de que o sistema de formação contínua funciona mal ou avançamos com coragem para uma mudança dura, mas necessária, para ajustar o sistema a uma oferta formativa coerente, com controlo de qualidade e alinhada com outras formações internacionais de referência. Se quisermos, a escolha é entre termos melhores professores ou os mesmos professores aprisionados num sistema que não os deixa crescer profissional e cientificamente.

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