Consoanticídio, a doença infantil (e adulta) do acordismo

Um exemplo: a palavra “opção”. O escrevente torce o nariz àquele “pç”, reescreve como melhor lhe soa e fica… “oção”.

Há quem julgue que aplicar o Acordo Ortográfico é assassinar consoantes. Até uma conhecida escritora já o disse na televisão, por isso é caso arrumado. Começa-se pelas ditas mudas: encosta-se-lhes o ouvido e, se não soltam pio, cadafalso com elas. Depois, como um par de consoantes juntas ainda causará estranheza (e só nesta palavra, reparem, até há um arrepiante trio, “str”!), ignora-se o que chega ao ouvido e vão a eito as que sussurram junto com as que até gritam. E assim fica o escrevente plenamente satisfeito na sua ânsia de modernismo ortográfico. O que daí resulta, pelo que se vai lendo em jornais, legendas de televisões, folhetos técnicos, turísticos ou escolares, básicos e até universitários, é um desfile cómico de aleijões cujo significado, ao leitor desprevenido, surgirá bizarro ou mesmo indecifrável. Não se trata, aqui, do Acordo Ortográfico em si (a cujos malefícios voltarei sempre que necessário, e conto fazê-lo enquanto for vivo), mas sim dos resultados práticos daquilo que se entende pela sua “aplicação”. Um exemplo: a palavra “opção”. O escrevente torce o nariz àquele “pç”, reescreve como melhor lhe soa e fica… “oção”. É verdade. Por um triz, não saiu “opão”. Mas “adaptação” também já deu “adatação”, tal como “convicção”, com duplo C bem sonoro, vem sendo escrita “convição”, e com toda a convicção. Por isso, há por aí muitos “convitos”, que bem podiam ser “convicos”, se a degola da consoante se fizesse lançando uma moeda ao ar. Mas, ainda assim, nada disto tem nexo, é tudo casuístico.

Sabem o que é o “apocalise”? É um apocalipse sem o segundo P. Já vimos anunciar o conhecido filme “Apocalise Now” ou a peça de teatro “Os Quatro Clowns do Apocalise”. Até a Biblioteca Nacional chegou a registar O Apocalipse Estável de Karl Kraus como… “Apocalise Estável”! E isto, que já foi denunciado em 2015, no PÚBLICO, no artigo de opinião “Apocalise abruto”, de Octávio dos Santos (a partir de levantamentos feitos por João Pedro Graça, com contributos de João Roque Dias, Francisco Miguel Valada, Fernando Venâncio e António Fernando Nabais, entre outros; e que vêm sendo feitos também por João Esperança Barroca, que publica crónicas regulares sobre o tema da língua e da ortografia no jornal Cidade de Tomar), continua, em vez de abrandar. Haverá quem diga: “erros sempre houve” ou “turbulência na escrita em períodos de adaptação ortográfica [há já quem escreva “adatação”, convém lembrar] é coisa natural, pode levar anos até que a nova norma esteja totalmente absorvida” (será “asorvida”? ou “aborvida”?). Mas é bom não confundir aquilo que se entende por “antiga norma” ou “nova norma” (com tudo o que de perverso se esconde por detrás destas designações) com o chorrilho de asneiras que, a pretexto da “nova norma”, vai inundando a escrita por estas paragens. Como se tivessem aberto as comportas de uma barragem e já não houvesse sequer forma de estancar a força das águas.

E nesta torrente, sem que nenhum novo vocabulário ou dicionário o sancione, vêm (exemplos recentes) “adeto” por adepto, “adito” por adicto, “apocalise” por apocalipse, “autótone” por autóctone, “compato” por compacto, “conveção” por convecção, “convição” por convicção, “critomoeda” por criptomoeda, “diaframa” por diafragma, “egício” por egípcio, “erução” por erupção, “espetável” por expectável, “espetativa” por expectativa, “etoplasma” por ectoplasma, “eucalito” por eucalipto, “excessão” por excepção”, “excepo” por excepto, “fitício” por fictício, “frição” por fricção, “galático” por galáctico, “impato” por impacto, “hetágono” por heptágono, “inato” por inapto, “intato” por intacto, “inteletual” por intelectual, “interrução” por interrupção, “manética” por magnética, “nétar” por néctar, “oção” por opção, “ocipital” por occipital, “ojetivo” por objectivo, “otogonal” por octogonal, “otógono” por octógono, “pato” por pacto, “piroténico” por pirotécnico, “profilático” por profiláctico, “protologia” por proctologia, “proveta” por provecta, “réteis” por répteis, “ténica” por técnica, “tenológico” por tecnológico. Há ainda palavras que o vocabulário do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) reconhece, mas que nem a Academia das Ciências nem o Priberam do Brasil sancionam, como “arimética”, “corruto” ou “elítico”; ou palavras dadas como “válidas” para Portugal, segundo o IILP, mas que o Brasil não usa nem reconhece, como “impercetível” por imperceptível, “infeção” por infecção, “invetivo” por invectivo ou “prospeção” por prospecção.

Em 2015, sublinhando tal caos, Octávio dos Santos terminava dizendo: “De Belém e de S. Bento espera-se uma resposta. Urgentemente.” Seis anos passados, só o silêncio. E ainda mais asneiras.

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