O soldado que quis dizer a palavra “medo”

Quando tem de subir ao palco nas aulas e dizer palavras de medo, o soldado Carlos troca as letras e sai-lhe raiva ou revolta. As palavras de medo escritas pelo autor, um outro homem que não o soldado, não lhe saem.

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Kevin Schmid/Unsplash

O soldado Carlos queria ser actor porque lhe disseram que no teatro, ao contrário do exército, ele poderia dizer a palavra “medo”. Também lhe disseram, na verdade foi uma pessoa que lhe apareceu num sonho, que não só podia dizer a palavra “medo” como poderia assumir perante os outros que o sentia. O soldado Carlos não sabia como é que isso iria acontecer: se seria o medo de subir ao palco ou de enfrentar coisas que conhecia ou de conhecer outras coisas que desconhecia. Sabia que acontecia muitas vezes e a várias pessoas o desejo forte andar a par com o medo.

Inscreveu-se, então, num curso de teatro mas as primeiras aulas não correram como pretendia. Não sabia se era a luz dos projectores ou a timidez que lhe feria os olhos, que ficavam ainda mais recolhidos em cima do palco, ou se era o calor da sala fechada que transformava as suas têmporas em duas bicas de água corrente e morna, mas sentia desconforto. Medo não, disso não tinha. O Carlos era um soldado e queria muito dizer a palavra “medo” mesmo que fosse no palco.

Investiu no curso de representação todo o dinheiro das poupanças de anos no exército para ver, a cada aula, o seu dinheiro transformar-se em pânico e frustração e não em medo, como lhe tinham garantido no tal sonho. Por isso, pensou faltar às aulas ou desistir do curso. O melhor seria ficar em casa, deitado, com a noção do seu falhanço. Imaginava-se incapaz de reunir a coragem suficiente para verbalizar a palavra “medo”.

Se o teatro fosse como o exército, o medo que o soldado Carlos quer dizer seria motivo de humilhação. No teatro, bem como em toda a arte, mostrar medo é sinal de coragem, matéria de trabalho e até é tido como uma certa inocência e honestidade. Quando tem de subir ao palco nas aulas e dizer palavras de medo, o soldado Carlos troca as letras e sai-lhe raiva ou revolta. As palavras de medo escritas pelo autor, um outro homem que não o soldado, não lhe saem. A sua voz, antes grossa e imperativa dos tempos de farda, fica melíflua e põe-se a articular barbaridades. As mãos tremem-lhe quando tem de agarrar a arma do drama, quando já manuseou seguro tantas armas verdadeiras. As pernas tornam-se bambas a cada marcação da esquerda alta para a baixa e vice-versa, como se fosse mais difícil a cena do que as trincheiras que tão bem conheceu.

O soldado Carlos já não vai para novo, mas se sempre quis ser livre, se estava consciente da sua vocação para a liberdade e das respectivas competências, porque falhava tão redondamente a cada gesto ou récita? Atribuiu as culpas ao exército. Talvez a disciplina extrema com que fora educado lhe impossibilitasse ter a liberdade com que sonhava. O soldado Carlos estava mesmo prestes a desistir do sonho quando montaram o cenário para a apresentação do exercício. Bélico, como só os tanques de guerra podem ser, metia-lhe medo. Um medo maior do que aquele que sentira na guerra de verdade, durante o primeiro festival de tiros a que assistira. A representação da guerra provocou-lhe um medo maior do que alguma vez sentira. Por isso, a única palavra que lhe ocorria dizer era essa.

Subiu ao palco para ensaiar em cima do tanque e disse todas as récitas na perfeição. Talvez por estar cheio de medo deixou de temer a palavra propriamente dita. No fim do ensaio geral disse ao encenador: “Tenho medo.” Que alívio, pensou. Afinal de contas, tratava-se apenas de uma palavra. Da palavra “medo” não tenho medo. Tornou-se actor e passou a temer a palavra “fim”. 

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