Eutanásia: “Perdemos todos quando estes documentos não passam pelo Conselho Nacional de Ética”

Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), lamenta que o organismo não conheça o diploma, nem tenha sido a chamado a pronunciar-se sobre o mesmo.

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Na véspera do debate da lei da eutanásia no Parlamento, Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), adianta que o organismo ficou à margem do processo nesta recta final. “Como compreender que esta questão seja então votada pelo Parlamento sem que o que o CNECV seja ouvido?”, questiona a professora catedrática de Ética da Universidade dos Açores em entrevista ao PÚBLICO-Renascença, que pode ouvir esta quinta-feira às 23h, defendendo também que este tema deveria ser referendado. Em funções desde Setembro, a antiga deputada pelo PSD ao Parlamento Europeu (2009-2014) diz, nesta que é a sua primeira entrevista, que também em relação ao processo legislativo da inseminação post mortem o Conselho “tem sido colocado à margem”.

O Parlamento debate esta quinta-feira a lei da eutanásia, que sofreu várias alterações. Como vê esta versão final? 
É importante que a sociedade civil conheça aquilo que são as competências do conselho. E que os nossos deputados confiem no conselho para poder receber aquilo que são as perspectivas de análise, as posições tomadas por um órgão independente, plural, multidisciplinar. E que pode apresentar perspectivas de análise sobre questões que dizem respeito aos valores e fundamentar essas perspectivas de análise. A pergunta que me faz obriga-me a esta introdução, porque o conselho não tem conhecimento do documento que irá ser discutido quinta-feira.  

Esta versão não vos foi enviada? 
Nem o CNECV tem esta versão, nem está pública. Procurei-a no site da Assembleia e não estava disponível, o que significa que o cidadão comum não sabe efectivamente o que vai ser debatido. Todos nós temos consciência que esta versão responderá às objecções formuladas, particularmente pelo Tribunal Constitucional e também pelo senhor Presidente da República, mas o CNECV não conhece e, sobretudo, não foi ouvido.

Anteriormente, num artigo de opinião, teceu a mesma crítica por o Parlamento não ter tido em conta o parecer do CNECV na versão votada em Janeiro. 
A crítica que fiz no passado foi enquanto cidadã empenhada nestas matérias. Neste momento, falo enquanto presidente do CNECV. Este organismo é uma vantagem para o nosso país no sentido em que está vocacionado para fazer análise e para emitir recomendações sobre matérias que importam à sociedade e que têm uma dimensão ética fortíssima. Como acontece no caso da designada “morte medicamente assistida”. Como compreender que esta questão seja então votada pelo Parlamento sem que o que o CNECV seja ouvido? Penso que ficamos todos a perder, quando estes documentos não passam pelo CNECV. 

Sente que há um desprezo pelo papel que o conselho pode ter e a importância que deve ter? 
Em termos gerais, precisamos de fazer um estudo sobre o impacto que as deliberações do conselho têm tido na vida sociopolítica nacional. Receio que o impacto não seja tão forte quanto seria nosso desejo, o que significa que há trabalho a fazer por parte do conselho de uma proximidade maior dos decisores políticos e também junto da população. Por outro lado, esta matéria da morte medicamente assistida tem estado muitíssimo fechada no Parlamento. Sobre estas matérias penso que não será o recomendável.

Tenho ouvido o argumento que os nossos deputados exercerão a sua decisão nestas matérias como representantes dos cidadãos. O que é curioso é que verificamos depois que alguns partidos dão liberdade de voto aos seus deputados. Ao dar liberdade de voto significa afinal que os deputados vão votar de acordo com a sua consciência, um direito que o próprio cidadão não tem, porque não houve consulta directa ao cidadão. 

Este é assunto que deveria ser referendado? 
Todos temos consciência de que precisamos de qualificar a nossa democracia. E alguns actos de democracia directa podem ser uma forma de qualificação desta mesma democracia. Este poderia ser um caso, em que abrir o debate mais amplamente ao cidadão e deixá-lo tomar uma decisão garantiria que a decisão final seria também mais consentânea com o sentimento geral do povo português em relação ao assunto.

Considera que esta nova formulação também deve ser enviada para o Tribunal Constitucional? 
Essa decisão competirá ao Presidente da República, se considerar existir dúvidas acerca da sua constitucionalidade. As observações anteriores do Presidente da República diziam respeito à terminologia que era utilizada no diploma – uma linguagem muito vaga deixa os critérios da tomada de decisão também muito vagos, com uma responsabilidade diluída, que mais uma vez constitui um prejuízo para o próprio processo. 

Os deputados fazem uma espécie de definição do que é “lesão definitiva de gravidade extrema”, considerando que é “lesão grave, definitiva, amplamente incapacitante, que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das actividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada que tais limitações venham a persistir no tempo, sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa”. Parece-lhe que estes termos serão definições suficientes? 
As definições têm de ser analisadas com todo o rigor. Não o posso fazer precipitadamente aqui. Muito menos em nome do CNECV, que não debateu essa questão. Poderei apenas acrescentar que definições que sejam demasiado amplas cobrirão também um mais amplo sector da sociedade e, pelo que ouvi muito rapidamente, diria que muitos idosos em situação de dependência cabem nessa definição. Obviamente que não é esta a ideia que estará na intenção do legislador.

Em 2016, numa entrevista, dizia que a legislação que temos em termos de testamento vital e de directivas antecipadas de vontade é das mais avançadas do mundo sobre a suspensão de tratamento. Continua a achar que essa legislação seria suficiente e poderíamos dispensar a lei da eutanásia? 
As palavras que acabou de repetir dizem respeito à minha posição pessoal. Eu continuarei a dizer que a lei que temos sobre directivas antecipadas de vontade é o que podíamos dizer das mais progressistas, porque tem uma amplitude enorme para o exercício da autonomia da pessoa em fim de vida.

É interessante verificar que o Governo, quando avançou com esta lei, esperava alcançar à volta dos 20 mil subscritores das directivas antecipadas de vontade nos primeiros seis meses, se não estou errada. Creio que este número só foi alcançado em 2018/2019  o que é indicativo, em primeiro lugar, da falta de conhecimento do cidadão das directivas antecipadas de vontade e, em segundo lugar, talvez também – não temos estudos que garantam a objectividade da minha apreciação de algum desinteresse em relação a esta matéria. Então pergunto eu, em termos pessoais: porquê avançar imediatamente para uma lei da eutanásia, quando ainda não temos as directivas antecipadas de vontade plenamente conhecidas por parte do cidadão e exercidas por ele mesmo? Penso que queimamos aqui etapas e talvez mais por uma agenda política do que por um interesse do cidadão. 

Outra questão que também não está fechada e tem sido um processo legislativo moroso é a inseminação post mortem. O Presidente devolveu a lei ao Parlamento, levantando questões relacionadas com as heranças. O CNECV tem acompanhado este assunto? Têm dúvidas sobre esta questão? 
De novo o CNECV tem sido colocado à margem desta temática que é específica das competências do conselho. Não tendo sido enviado qualquer tipo de documento para uma tomada de posição por parte do CNECV, este mandato, que tomou posse em Julho e começou a funcionar em Setembro, ponderou analisar este processo, mas o processo está de tal forma adiantado que não há margem para pronunciamento do conselho em relação a esta matéria.

A comunicação social e o cidadão comum devem interrogar-se sobre a necessidade de ter um mecanismo que está vocacionado para assessorar o legislador nestas matérias e que continua a ser mantido à margem do que são os problemas mais complexos e mais controversos na sociedade portuguesa. E depois assistimos à produção de legislação sem que quem de direito tenha tido sequer possibilidade de se pronunciar. Isto não é saudável para a nossa democracia e não é benéfico para a bondade legislativa dos processos.

O mundo está a discutir as alterações climáticas na COP26. Como vê esta cimeira: com esperança ou com receio de que, como disse António Guterres na abertura, continuemos a cavar a nossa sepultura como espécie? 
Sobre esta matéria o conselho ainda não se pronunciou e, por isso, falarei do ponto de vista pessoal. Temos de manter a esperança, porque aquilo que está em jogo é demasiado importante para não termos esperança e para não estarmos mobilizados. Estas questões da protecção ambiental e animal são fortemente consensuais, ao contrário do que acontece com os outros assuntos de que falámos.

Sendo tão consensuais, como é os governantes, e a humanidade em geral, não conseguem chegar a um consenso sobre as medidas a tomar? 
Porque sendo consensuais e até reconhecidamente urgentes, as estratégias dividem os vários países e os cidadãos. É necessário trabalhar ao nível político, tentando criar estímulos a actividades não poluidoras, taxar de tal forma importações de países que estejam longe da neutralidade carbónica que se desincentive esta economia que nos tem trazido a este ponto de quase não retorno. A nível económico, precisamos de mudar os sistemas de produção, transformação, distribuição e consumo e aí todos nós estamos implicados. Já não basta uma política de reciclagem, mas precisamos de avançar para uma economia circular, que tem muito menos resíduos.

Também temos de trabalhar bastante as formas de comunicação. Como comunicar com os vários sectores produtivos e com os vários segmentos da população? Estamos a assistir a discursos inflamados, emotivos e, por vezes, também inflamatórios. Será melhor uma hermenêutica do medo, que nos faça mudar de atitudes, ou, por outro lado, poderá conduzir a atitudes mais violentas ou a situações de ansiedade e angústia que se estão a multiplicar entre os nossos jovens? Será suficiente um discurso mais factual, baseado nos dados da ciência, e, sobretudo, baseado no exemplo, mostrando o que está a acontecer no nosso planeta, como é que vidas de pessoas iguais a nós estão a ser afectadas? Se calhar, conseguimos prescindir do discurso mais inflamado e ter uma acção mais eficaz. A ética do exemplo é a mais eficaz desde o princípio da humanidade.

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