O apocalipse ao virar da esquina

Os cidadãos do mundo enfrentam uma ameaça enorme, e não é a da sua morte, é a da morte do planeta.

Apesar do aumento cada vez mais rápido das temperaturas, do esgotamento dos recursos, parte da humanidade parece ainda não entender a urgência. É certo que as previsões apontam um cenário longínquo, lá para o final do século, e a nossa lógica económica consumista vai na direção oposta. Mas os cidadãos do mundo enfrentam uma ameaça enorme, e não é a da sua morte, é a da morte do planeta.

Até agora, os seres humanos aqueceram o planeta 1,1 graus Celsius desde os tempos pré-industriais, aumento decorrente do uso do carvão, petróleo e gás para energia, e ainda pela redução das florestas – elas são essenciais para absorver as emissões decorrentes do uso dos combustíveis fósseis. 

Ficar a + 1,5 ° C de aumento significa emitir apenas e só um total de pouco mais de 300 giga toneladas de CO2, de acordo com vários estudos científicos. Ao ritmo atual, esse valor esgota-se em cerca de oito anos.

Mas se estamos numa emergência cientificamente inquestionável, há muitas questões ainda em aberto para se conseguir reduzir o cenário catastrófico que um aumento da temperatura acarreta. Todas com inúmeras consequências no dia-a-dia do cidadão comum, e a obrigar a uma intensa adaptação em várias áreas das nossas sociedades, seja a economia, a finança ou o direito.

Para alcançar a neutralidade de carbono até 2050 temos de mudar o sistema elétrico, fechar as centrais a carvão, acabar com veículos a gasolina e gasóleo, isolar melhor as casas, substituir o aquecimento por bombas de calor, inventar novos processos industriais... Nada disto se fará sem custos. Setores inteiros desaparecerão, outros irão surgir, obrigando a grandes desafios para apoiar socialmente as populações que vão perder os seus empregos.

O recente aumento dos preços da energia não pode ser dissociado da urgência climática. É, em certa medida, o sinal da resistência das energias fósseis à inevitabilidade de um mundo que não as pode continuar a utilizar.

A transição para uma economia de baixo carbono penaliza já as indústrias que emitem muito CO2 e, consequentemente, toda a atividade económica que a elas está exposta. Até mesmo o sector bancário corre perigos, o que está evidenciado nos “ativos fósseis” dos seus balanços. E se a regulação dos governos endurecer ainda mais as restrições, o risco de avultados empréstimos não serem pagos não é negligenciável. De acordo com um estudo do Instituto Rousseau, em junho deste ano, “os principais bancos continuam a financiar combustíveis fósseis em grande escala”.

Também o pensamento económico está a levar tempo e ainda não se adaptou à emergência climática. Em 2019, dois economistas, Andrew Oswald e Nicholas Stern, realçaram que dos 77.000 artigos publicados pelas mais conceituadas revistas académicas de economia apenas 57 eram sobre o tema das alterações climáticas. Só que é também muito de contas que se trata quando se fala da transição energética. A começar pela questão em torno de quem a vai pagar, cidadãos ou empresas, ou cidadãos e empresas. Qualquer cenário traz riscos. Desde logo políticos.

Até agora, os governos têm procurado conter possíveis descontentamentos sociais: baixa simbólica de preços, cheques às famílias, redução de impostos sobre os combustíveis. Sendo que esta última tem consequências nos orçamentos de Estado e dá um sinal negativo quanto à urgência da transição energética para combater as alterações climáticas.

Na UE são notórias as divisões sobre quem deve pagar a fatura das alterações climáticas. Uns consideram que devem ser as indústrias poluentes, outros o cidadão europeu. Mas a experiência dramática da crise dos coletes amarelos em França, há três anos, está na mente de muitos dirigentes. Sobretudo agora com o regresso do crescimento económico e com o desemprego a retomar os valores anteriores à crise pandémica. 

E já que estamos aqui, se cada ser humano no planeta tivesse o mesmo direito de emitir gases de efeito estufa, isso acabaria por levar a uma transferência direta de riqueza entre países ricos e países pobres o suficiente para erradicar a pobreza extrema no mundo. Os últimos não se cansam de referir que o CO2 acumulado desde o início da era industrial é, sobretudo, uma herança da Europa e dos EUA, e não deixam de ter razão. 

Quanto às promessas do Acordo Paris de 2015 para ajudar os países mais pobres a fazer a transição, elas ainda estão por cumprir. São cem mil milhões de dólares anuais até 2020, e falta ainda 1/5 dessa verba respeitante às transferências de 2019. É um valor quase ridículo, o equivalente ao volume de dinheiro anual da Liga de Futebol Profissional americana. Só que crucial nesta fase para muitos países em desenvolvimento.

Seja lá como for, o que se passar com eles não deixará de nos afetar a todos. É o planeta todo que está em risco. Os esforços, por isso, deveriam evitar prolongar injustiças ou criar outras injustiças. E nenhum país pode ficar de fora. Seja Brasil, Índia ou Vanuatu. Ou a China. 

O aquecimento climático ligado às atividades humanas é conhecido há cerca de quarenta anos. Da ExxonMobil, BP e Shell à francesa Total, todas as petrolíferas sabiam há muito o que estava em causa, e ainda assim todas usaram verbas de milhares de milhões para fazer circular informações falsas, semear dúvidas sobre a realidade do aumento da temperatura, atacar o consenso científico e atrasar ao máximo a luta contra as alterações climáticas. A sua motivação foi sempre o lucro, numa ganância cega. 

Tudo tem a ver com o crescimento económico, e ele é quem tem alimentado o aquecimento global. O aumento da atividade económica andou sempre a par do aumento do uso de energia e da exploração constante dos recursos naturais. Mas são agora várias as vozes a defender o decrescimento económico. Argumentam que a economia global deve ser travada para reduzir as emissões de CO2 e querem uma mudança sistémica, assim como uma redistribuição de riqueza, necessária para conseguir que a mutação energética se possa fazer de forma socialmente sustentável. 

Por outro lado, os defensores do “crescimento verde” estão otimistas de que políticas e tecnologias apropriadas reduzirão as emissões de CO2 a níveis sustentáveis, garantindo assim crescimento económico, e esta é a visão partilhada pela grande maioria dos governos. O debate, apesar de tudo, não se fez.

As controvérsias sobre o clima e biodiversidade, a exigência que pesa sobre toda a humanidade, têm-se mantido fora do mundo jurídico. Mas ele está forçado a entrar nelas com maior acuidade. Até agora, os sistemas jurídicos ocidentais baseiam-se na ideia de uma separação radical entre as pessoas, que têm direitos, e as coisas, a Natureza, que deles está privada. Mas a aniquilação global dos ecossistemas já levou a certas ações inimagináveis: em 2017, a Nova Zelândia declarou o seu rio Whanganui uma entidade viva, e dias depois um Tribunal Superior na Índia atribuiu personalidade jurídica a alguns glaciares e a tudo o que neles se implica, rios, lagos, vales, florestas, aos quais foi estabelecido o direito a existir.

O ser humano começa a deixar de ser a medida de todas as coisas. No dia em que todos percebermos isto, que não podemos viver sem um planeta para viver, então teremos entendido melhor o desafio que temos diante de nós. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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