A estatística como uma arma contra a desinformação

A literacia estatística das populações é baixa em geral, é certamente baixa em Portugal, e isso tem um preço a pagar também na propagação da desinformação. A estatística é uma das vacinas que podemos usar para combater a desinformação.

Hoje, 20 de Outubro, comemora-se o dia Europeu da Estatística, uma celebração anual, que seguindo os auspícios do The European Statistical Advisory Committee (ESAC), ocorre sob o lema “Estatística, uma vacina para proteger a democracia e combater o vírus da desinformação”. Este lema não se posiciona muito longe do tema desta efeméride no ano passado, quando, como se pretende que aconteça a cada cinco anos, se comemorou o Dia Mundial da Estatística sob os auspícios da ONU sob o lema “Ligar o mundo com dados em que podemos confiar”. Ambos os lemas convergem numa ideia comum, o problema central da desinformação que se apresenta no século XXI como uma das principais ameaças às democracias.

A ideia do lema deste ano parece simples. Se a desinformação se baseia na difusão de informação que não é de facto verdadeira, a melhor forma de a combater será criar informação fidedigna e formas de a transmitir que sejam claras e eficazes. E para isso precisamos de estatísticas oficiais fortes, actuais, transparentes e comunicadas de forma clara e eficaz. Desta forma, espera-se que entre informação de qualidade e informação duvidosa as populações sejam capazes de separar o trigo do joio.

Infelizmente, aquilo que observamos actualmente é que poderá não ser suficiente criar boa informação, é preciso garantir que esta se propaga de forma mais rápida e eficaz do que a própria desinformação. Tal como num corpo em que se começa a desenvolver um cancro, e em que as células cancerosas têm de facto uma capacidade de se desenvolverem mais rapidamente que as células boas, também parece que as falsas notícias têm uma capacidade muito grande de propagação. Desta forma, é possível que, ao invés do que o lema deste ano promete, conter a propagação de falsas notícias não dependa por isso tanto da nossa capacidade de produzir dados e estatísticas novos e fiáveis. Talvez dependa sobretudo da nossa capacidade de desacelerar a propagação de más notícias. No fundo, usando a analogia do cancro, é preciso encontrar formas de diminuir a velocidade de propagação das células más. Isso será certamente mais eficaz do que tentar produzir mais células boas. Tal como no cancro, não compensa dar factores de crescimento às células boas, mas compensa atacar as células más, por exemplo com quimioterapia ou radioterapia.

Uma das formas de como se pode reduzir a velocidade a que as notícias falsas se propagam é desenvolver a capacidade de pensamento crítico da população em geral. A educação é a principal arma para tal e os governos democráticos – e digo democráticos porque naturalmente num regime não democrático não pode haver, por definição, grande interesse em ter uma população educada – a nível mundial deveriam começar a pensar seriamente em integrar programas educacionais nas escolas que permitam aos alunos identificar fontes de desinformação. Existem alguns países em que essa estratégia é transversal, mas, se quase todos conseguem reconhecer o problema, poucos são os que já têm em prática estratégias educacionais sólidas para o combater.

Neste campo, a estatística tem um longo caminho a percorrer, mas pode de facto contribuir de forma decisiva. A literacia estatística das populações é baixa em geral, é certamente baixa em Portugal, e isso tem um preço a pagar também na propagação da desinformação. A Sociedade Portuguesa de Estatística tem como um dos seus objectivos fundamentais desenvolver essa mesma literacia estatística, fundamental para uma cidadania plena. Apenas podemos exercer hoje em dia essa cidadania conscientemente, num mundo dominado por dados, algoritmos e modelos, se compreendermos minimamente os que está por trás da forma como se recolhem os dados e o que governos, empresas ou grupos de lobby com interesses mais ou menos recomendáveis podem fazer com eles. Perceber números e saber interpretá-los é quase tão importante como saber ler e escrever. Informação é poder e, como tal, perceber como a informação quantitativa é gerada é absolutamente fundamental.

Mas por que é a informação contida nos números tão relevante? Poderia encher as páginas de um livro com exemplos, mas alguns exemplos serão certamente úteis neste contexto. Convêm lembrar que muitas vezes uma das formas de dar consistência a uma falsa notícia é fazê-la acompanhar de dados ou de estatísticas que a pareçam apoiar. As pessoas não se sentem confortáveis com informação numérica em geral e, como tal, é apenas natural que se sintam menos tentadas a duvidar quando uma afirmação é justificada numericamente.

Se alguém disser que a ivermectina é útil no tratamento da covid-19, se isso for acompanhado de gráficos ou de uma afirmação bombástica – por exemplo que 86% dos pacientes a quem foi administrada não chegaram a contrair a doença – ganha quase carácter de prova. Na realidade, apesar dos boatos e notícias falsas, não foi demonstrado que exista qualquer efeito útil da ivermectina contra a covid-19, e os argumentos a favor são continuamente desmontados e associados a interesses económicos mais ou menos obscuros. A maior parte dos estudos, se não todos, que existem a promover e supostamente apoiar os benefícios da droga tem sido sistematicamente demonstrado serem falsos, fruto de manipulações ou apresentarem erros de análise grosseiras.

Ainda mais curioso é que o facto de que, apesar de no exemplo hipotético acima 86% ser um número que aparenta conferir um forte benefício à droga – afinal 86% dos pacientes não chegarem a contrair a doença parece significar que a droga é boa –, na realidade não quer dizer absolutamente nada. Falta um número importante para interpretar os 86%. Se 10% da população do país em questão tiver sido infectada, isso significa que a proporção de pessoas infectadas entre os que receberam o tratamento, 14%, era afinal superior ao da população em geral. Não mostrava qualquer efeito positivo da droga, antes pelo contrário, até parecia que as pessoas que tomavam a droga tinham uma tendência para serem mais susceptíveis a contrair a doença. Saber perceber e interpretar os números é fundamental.

A argumentação constante sobre se as vacinas são ou não são eficazes é outro exemplo de onde compreender estatística poderia ajudar a clarificar discussão. Que na realidade, do ponto de vista científico, não existe. As vacinas são, possivelmente, uma das maiores invenções da humanidade, e resultam, e são, grosso modo, incrivelmente seguras.

A questão é frequentemente colocada de forma errada. O grupo antivacinas da moda apresenta os vários sintomas já detectados pós-vacinação como prova de que as vacinas são más e podem provocar reacções adversas, e como tal devem ser banidas. As vacinas não são más, mas claro que podem provocar reacções adversas. Cada dia que o nosso corpo entra em contacto com elementos estranhos, o sistema imunitário reage. Por vezes, essa reacção não é a que queríamos.

A maior parte dos leitores, se cortarem um dedo enquanto cortam uma cebola para fazer um refogado, lavam o dedo, desinfectam-no, colocam um penso e desfrutam do jantar. Mas é possível em casos raros, num leitor mais azarado, que haja complicações, o corte infecte e, curiosamente, em particular se não tiver a vacina contra o tétano em dia, o leitor pode até morrer. Vale a pena desistir de cozinhar? Bom, de facto não, porque o risco de fazer o refogado é compensado pelo prazer de comer as belas amêijoas à Bulhão Pato que se seguem.

Nas vacinas, é a mesma coisa. Não vale a pena averiguar se por vezes há complicações, isso sabemos que é um facto, por vezes há. O importante é comparar o risco relativo em que incorre alguém que tomou a vacina contra o risco relativo em que incorre alguém que não tomou a vacina, contra todas as coisas más que lhe podem acontecer a seguir. Vejamos três exemplos.

Primeiro: risco relativo de morrer atropelado três dias mais tarde. Igual para vacinados e não vacinados, acho que todos os leitores concordam. Mesmo apesar de algumas “notícias” estranhas que por aí circularam do género “Homem morreu três dias depois de ser vacinado”, deixando para o corpo da notícia o fundamental “atropelado”, que na realidade faz com que a notícia não o seja.

Segundo: risco de estar cansado no dia seguinte ou ter uma febre? Muito maior para os vacinados, é chato, de facto.

Terceiro: risco de morrer ou ter complicações graves no seguimento de infecção por covid-19? Muito, mas muito, maior para os não vacinados. E isto são factos. Eu prefiro de longe o cansaço a morrer. Não querer ser vacinado por causa de potenciais efeitos secundários de que eventualmente ouviu falar é o equivalente a não querer passar nas passadeiras porque de vez em quando lê uma notícia sobre alguém que foi atropelado na mesma. É obviamente mesmo assim muito mais seguro passar na passadeira do que atravessar fora dela. E não conseguir perceber isso é uma consequência directa da deficiente interpretação de probabilidades condicionais e riscos relativos, algo sobre o qual a estatística tem naturalmente uma palavra a dizer.

Aconteça o que acontecer, a desinformação é uma doença, e a estatística uma das vacinas que podemos usar para a combater. Vacine-se, ou neste caso, leia um livro. Um excelente começo é o livro de David Spiegelhalter, The Art of Statistics, da Pelican Books. Infelizmente não ganho comissão por recomendá-lo, mas, quem sabe, talvez mude a forma como vê o mundo.

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