Faz sentido falar de alimentos bons e maus?

Nunca houve tanta informação à solta sobre nutrição e alimentação saudável, nem propostas de dietas para todos os gostos e feitios. E, no entanto, apercebo-me diariamente de que as pessoas estão cada vez mais confusas sobre o que podem comer.

Foto
Rui Oliveira

Não há alimentos “bons” e alimentos “maus”. Hoje é o Dia Mundial da Alimentação e, num mundo onde há centenas de milhões de pessoas a morrer à fome, quase pode parecer ridículo debater a “bondade” ou a “maldade” do que comemos. Mas a verdade é que é preciso falar disso, mais do que nunca. Não só porque vejo pessoas cada vez mais confusas (e stressadas) sobre o que podem ou devem comer, mas também porque esta ideia de que há comida boa e má alimenta uma mentalidade restritiva e proibitiva em relação ao que pomos no prato, que facilmente degenera em comportamentos obsessivos e compulsivos com a comida.

Nunca houve tanta informação à solta sobre nutrição e alimentação saudável, nem propostas de dietas para todos os gostos e feitios. E, no entanto, apercebo-me diariamente de que as pessoas estão cada vez mais confusas sobre o que podem comer. Constato isso nos clientes que acompanho, nas pessoas que falam comigo, no meu círculo familiar e de amigos.

Há quem evite a fruta porque tem muito açúcar. Quem não coma hidratos ao jantar (ou de todo) porque engordam. Quem só consuma produtos “light” ou “low-fat”. Quem demonize tudo o que tenha glúten e lactose. E claro que não estou aqui a falar de condições de saúde específicas, como a doença celíaca ou a intolerância à lactose, ou de quem segue uma determinada dieta por questões éticas ou morais, como a dieta vegetariana ou vegan.

Muito graças às redes sociais, há uma tendência crescente para alinhar em “modas e modinhas”, uma espécie de pressão social para mostrarmos que também somos “fit” e saudáveis. Mas, na realidade, a alimentação é algo muito pessoal. As panquecas de aveia e banana não são necessariamente melhores que pão com manteiga ou queijo ao pequeno-almoço. Podem ser melhores para mim, mas não para si.

É fácil não nos apercebemos que temos esta lista de alimentos bons e maus já bem interiorizada. Mas pergunte-se: Quantas vezes já se massacrou por ter cedido à tentação e devorado aquele pastel de nata? Quantas vezes pensou “hoje portei-me bem” por se ter contentado com uma sopa ao jantar? Quando comemos alimentos “bons”, achamos que somos saudáveis, que estamos a fazer o que devemos. Quando comemos alimentos “maus”, achamos que falhámos e, claro, o problema é nosso, porque temos pouca força de vontade.

Sabe o que é isto? Stress alimentar. Nem sei se esta expressão existe, mas o stress em relação ao que comemos existe e anda por aí em força. E, tal como o stress do trabalho, dos nossos relacionamentos e da vida em geral, não nos faz nada bem. Perturba o nosso sistema digestivo, o nosso humor e estabilidade emocional e, consequentemente, compromete a nossa saúde.

Por isso, seja honesto consigo: também tem uma lista de alimentos bons e maus? Então vou dar-lhe seis razões para a pôr de lado e recuperar a liberdade na sua relação com a comida.

Todos os alimentos são “combustível” para o nosso corpo

Hoje em dia, a mensagem de que há alimentos bons e maus está em todo o lado: em livros sobre nutrição, na televisão, nas dietas das celebridades e influencers, na Internet e nas redes sociais ou até mesmo nas decisões políticas. É fácil dividirmos o mundo ao meio. De um lado, os alimentos saudáveis, ricos em nutrientes e minimamente processados, como os vegetais, a fruta, as leguminosas, a carne magra ou o peixe. Do outro lado, os produtos altamente processados, como o fast-food, ou os doces, o pão branco, as bolachas, etc..

É óbvio que há diferenças entre estas duas categorias. Os alimentos geralmente apelidados de “maus” têm menor valor nutricional e, quando consumidos de forma regular e em excesso, estão associados a um maior risco de doenças. Mas isso não faz deles “maus” alimentos.

Todo e qualquer alimento fornece combustível e nutrição ao nosso corpo. E qualquer excesso alimentar, incluindo de um alimento bom, pode ser prejudicial ao corpo. Por exemplo, o excesso de água pode prejudicar o funcionamento dos rins e provocar hiponatremia (diluição da quantidade de sódio presente no corpo) e o consumo único ou em excesso de um só tipo de fibra pode gerar inflamação nos intestinos, diarreia ou mesmo obstipação.

O nosso corpo beneficia de uma dieta o mais variada possível, porque é assim que consegue ir buscar todos os nutrientes de que necessita. Quando consumimos alimentos diversos, e comemos com moderação, comer um alimento rico em açúcar ou em gordura não compromete a nossa saúde.

Não é um alimento que define a forma como comemos ou quem somos

Conhece a história do jovem britânico que ficou cego depois de sete anos a comer apenas batatas fritas, pão branco, fatias de fiambre e salsichas? É claro que é assustador e faz-nos imediatamente pensar: então estes alimentos não são maus?

O problema não está especificamente nos alimentos que ele comia, mas nos que deixou de comer durante anos e que são essenciais para a saúde. A maioria das pessoas não come apenas batatas fritas, come uma variedade de alimentos. Por isso, o que se tem de preocupar é com algo chamado “equilíbrio”.

Se a maioria da sua alimentação (80 a 90%) é rica em nutrientes e minimamente processada, há certamente espaço para consumir alimentos menos nutritivos. Se a raiz é inversa (come sobretudo alimentos altamente processados e pouco nutritivos), há espaço para agir (veja aqui algumas dicas). Mas esqueça as listas de alimentos bons e maus, permitidos e proibidos.

Não temos de comer de forma perfeita para sermos saudáveis. E não ficamos com carências alimentares ou doentes se comermos umas batatas fritas ou um bolo. Do mesmo modo que não há alimentos bons e maus, também não somos boas ou más pessoas em função daquilo que comemos.

Sabia que até já existe uma doença para designar a obsessão com uma alimentação saudável? Chama-se ortorexia. Acontece quando a dieta se torna a principal fonte de preocupação, interferindo com o trabalho e relações pessoais, e limitando a nossa vida social. Quando o tema “comida” nos consome demasiado tempo (a planear ou preparar refeições, por exemplo) e o valor nutricional dos alimentos se torna mais importante do que o simples prazer de comer. Quando nos sentimos superiores porque comemos melhor que as outras pessoas. E, claro, quando nos culpabilizamos e punimos porque caímos em tentação e comemos um alimento “mau”.

Comer apenas por prazer é normal e não tem mal nenhum

A comida não é apenas combustível para o corpo, não são apenas nutrientes e calorias pesadas e somadas. É amor, partilha, cultura, tradições e, simplesmente, prazer. Ela serve muitos outros propósitos além da mera nutrição física, mesmo quando são alimentos que estão longe do nosso conceito “saudável”.

A comida conecta-nos a amigos e familiares, cria uma sensação de pertença e faz parte da maioria dos rituais de celebração que temos. O que seria do Natal sem rabanadas ou bolo-rei, por exemplo?

Quando pensamos desta forma, qualquer alimento – até mesmo aquele bolo maravilhoso da nossa mãe – pode ter um propósito e um espaço para acontecer. Em vez de termos uma lista de alimentos permitidos e proibidos, temos escolhas. Podemos escolher comer determinados alimentos porque nos dão energia, nutrição, saúde e outros simplesmente por prazer ou por outro motivo.

A alimentação deve ser bio-individual

Uma das razões pelas quais não devemos pensar nos alimentos como bons ou maus é porque não há uma dieta alimentar que sirva para toda a gente. Os alimentos que fazem bem a uma pessoa podem ser um “veneno” para outra. Limitarmo-nos a uma lista de “bom” e “mau” desconecta-nos do nosso próprio corpo e não permite perceber que alimentos nos dão mais energia e fazem sentir melhor.

A bio-individualidade é isto: a ideia de que cada um de nós tem necessidades únicas de alimentação e que esta deve ser adaptada às nossas necessidades, preferências, estilo de vida e condições de saúde. Ao contrário das “dietas da moda”, que tendem a falhar no médio e longo prazo, uma alimentação bio-individual é para a vida. E isso não quer dizer que ela não vai mudando, pelo contrário, ela também se vai transformando e adaptando às diferentes fases por que passamos.

O fruto proibido é o mais apetecido

O ser humano não lida bem com duas ideias: escassez e proibição. Algo escasso é, por norma, algo com mais valor, mais desejado. E algo proibido exerce sobre muitas pessoas um fascínio e um apelo únicos, difíceis de resistir.

Quando estamos em permanente restrição na nossa alimentação, os alimentos “maus” são vistos como escassos e proibidos, o que tende a aumentar ainda mais os apetites e desejos por eles. E quando cedemos, o que acontece? Sentimo-nos culpados e, muitas vezes, até acabamos a comer mais e deitamos por terra os nossos objectivos. Afinal, se já falhámos, várias vezes, é porque não somos capazes, certo? Esta relação com a comida torna-se pouco saudável e pode mesmo descambar em situações graves de compulsão alimentar.

Então, quer isto dizer que devemos comer tudo o que bem nos apetece, sem restrições? Não. Quer dizer que temos de mudar a nossa perspectiva. Em vez de demonizar determinados alimentos, posso decidir evitá-los no meu dia-a-dia, simplesmente porque não se alinham nos meus objectivos de saúde, me limitam de alguma forma (adoro pão, mas não a barriga inchada com que fico quase sempre!) ou porque tendo a comer em excesso. Posso deixá-los para ocasiões especiais ou para aqueles momentos em que tenho mesmo muita vontade e em que sei — e isto é muito importante — que não me vou sentir culpada depois.

Igualmente importante é percebermos qual a estratégia que funciona melhor para nós em relação à acessibilidade a estes alimentos que desejamos evitar no dia-a-dia. Para mim, por exemplo, serve-me melhor a estratégia “longe da vista, longe da boca”, ou seja, tento não ter em casa os alimentos que não se alinham tanto com os meus objectivos de alimentação saudável. Mas isso não quer dizer que nunca coma nada fora disso: lá está, reservo para momentos especiais ou fora de casa.

Em alternativa, há quem possa beneficiar mais da estratégia de ter sempre os alimentos “maus” à mão, porque isso ajuda a contrariar a tal mentalidade de escassez e restrição: se não sentir que aqueles chocolates são escassos, se souber que eles estão sempre ali à mão, talvez não devore a tablete de uma assentada. Mais uma vez, a abordagem é individual: cada um de nós tem de descobrir o que funciona melhor para si. E, claro, haverá sempre dias em que nenhuma destas estratégias nos valerá e acabaremos a comer algo que não queríamos. Isso é normal.

Aprender a gerir a fome emocional

Todos nós temos uma relação emocional com a comida. Todos nos refugiamos nela em busca de consolo, alívio ou simplesmente prazer perante situações de stress, ansiedade, isolamento, tristeza ou outros problemas emocionais. Não é preciso dizer que, na esmagadora maioria das vezes, esta fome emocional é pelos alimentos “maus”!

Se faz sentido para si e resulta riscar da alimentação uma série de alimentos, óptimo. Mas se não consegue eliminar da sua vida as batatas fritas, os gelados, os bolos, a massa ou o pão, saiba que há uma outra abordagem, consiste em perceber as causas da nossa fome por esse tipo de alimentos. Neste artigo, explico melhor o que é isto da fome emocional e como pode começar a desconstruí-la. Mas a ideia de base é apercebermo-nos dos nossos padrões alimentares: quais são os “gatilhos” que nos levam a comer de forma emocional? Em que circunstâncias ocorrem? Que pensamentos ou crenças estão associadas? Em vez de um inimigo a combater, a fome emocional pode até ser um guia, que nos dá pistas preciosas sobre que áreas da nossa vida podem estar em desequilíbrio.

Se se limitar a seguir a lista do que pode ou não comer, nunca vai fazer este trabalho de casa. E, garanto, ele é fundamental para termos uma relação saudável e livre com a comida.


Health coach, autora do projecto About Real Food

Sugerir correcção
Ler 1 comentários