Centeno: défice criado pela pandemia não se pode resolver só com mais receita

Governador do Banco de Portugal identifica “hiato de financiamento” no Estado de 1,8% do PIB, explicado por um aumento do peso dos salários e das prestações sociais. Aproveitar a retoma económica para aumentar as receitas não pode ser a única solução, avisa.

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Nuno Ferreira Santos

Com a economia a aproximar-se rapidamente dos níveis anteriores à crise, o Estado deve começar a reduzir o “hiato de financiamento” criado durante a pandemia nas contas públicas, alertou nesta quarta-feira o governador do Banco de Portugal, num apelo a um ajustamento que não seja apenas feito com base no aumento da receita fiscal, mas também reduzindo o peso da despesa pública.

No dia em que o Banco de Portugal actualizou as suas estimativas para a evolução da economia durante este ano, Mário Centeno aproveitou, a poucos dias de o Governo apresentar a sua proposta de Orçamento do Estado para 2022, para deixar clara a sua preocupação em relação à forma como o país irá, depois do aumento do défice e da dívida registado em 2020, começar a regressar a um cenário mais semelhante ao que se vivia em 2019, um ano em que se registou um excedente orçamental. 

Embora dizendo que “manda a prudência nestas circunstâncias que não se alheie o OE dos contributos para a recuperação económica”, o governador lembrou que o país voltou a ter uma dívida pública superior a 120% do PIB e que os níveis de endividamento, quer público quer privado, são algo “com que nos devemos todos preocupar”. 

Por isso, recomendou que se comece a reverter o “hiato de financiamento” criado pela crise, e para o qual o ex-ministro das Finanças tem um número: 1,8% do PIB, isto é, quase 4 mil milhões de euros. De acordo com Centeno, numa altura em que a actividade económica se aproxima do nível registado antes da crise, e mesmo “retirando todos os efeitos das medidas covid, ‘one-off’ e tudo o que é financiado por fundos europeus”, o rácio da despesa primária corrente no PIB é “1,8 pontos percentuais superior ao de 2019”. Um valor que é justificado em um ponto percentual com o aumento do peso das despesas com pessoal e 0,8 pontos com as prestações sociais.

A retoma da economia e o desempenho positivo do mercado de trabalho podem ajudar a reduzir esse hiato, reconheceu o governador, pelo efeito positivo que têm na evolução das receitas fiscais e das contribuições para a Segurança Social. Mas Mário Centeno defendeu que fazer a consolidação orçamental apenas pelo lado da receita “não seria bom em termos de estrutura”, já que isso poderia deixar as finanças públicas “demasiado dependentes de futuras mudanças na conjuntura económica”. É preciso, por isso, olhar também para a despesa. 

Eliminar esse hiato de financiamento não será, contudo, algo para se fazer de forma brusca. “Não é uma tarefa para fazer apenas num ano, mas é uma tarefa para se fazer”, assinalou, evitando deste modo dar conselhos específicos ao Governo relativamente ao Orçamento do Estado para 2022, cuja proposta será entregue por João Leão no Parlamento na próxima segunda-feira.

“É uma questão de retomarmos um processo [de consolidação orçamental], não é rapidamente regressarmos aos níveis de 2019, porque isso não seria bom para a confiança”, esclareceu.

A este nível, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é visto por Mário Centeno também como uma ajuda para pôr as contas públicas novamente num percurso de consolidação. “Ao contrário das crises anteriores, temos um PRR. E, devo dizer, até atendendo ao facto de ter estado envolvido na criação dos instrumentos europeus deste tipo quando ocupava outras funções, que eles foram desenhados precisamente para aliviar os países da dívida, não foram para trazer mais dívida a estes países.”

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