Desejo uma vida intensa com os meus netos

Muitas vezes choramos nos enterros não pela pessoa que morreu, mas pela nossa própria dor, às vezes dores antigas, pelo nosso medo da morte e pela angústia de saber que não vamos andar aqui para sempre.

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@designer.sandraf

Ana,

Pouco depois das gémeas nascerem mandei-te uma mensagem a perguntar se achavas que elas iam chorar muito no meu funeral, lembras-te? Pronto, admito que foi um bocadinho tétrico, mas retrospectivamente percebo que aquilo que queria era que me dissesses que ia ser relevante na vida delas. Prometeste-me que sim, e 11 anos depois sinto-me segura de que choravam mesmo. E isso conforta-me porque é sinal da relação que construímos, entretanto. Mas hoje espero sinceramente que só chorem um bocadinho.

Não te impacientes, já vou chegar ao meu ponto. Pronto, já lá estou: e o meu ponto é que fico enervada quando vejo posts nas redes sociais de pessoas destroçadas pela morte dos avós, avós que já morreram velhinhos, depois de uma vida cheia. Não disputo obviamente o que sentem, longe disso, mas o que me entristece é que sinto que para serem tomadas de uma dor tão violenta e dilacerante é porque os avós desempenharam, na realidade, o papel de pais (e há tantos que o fazem). Ou seja, na realidade, choram a morte dos pais que é, apesar de tudo, coisa diferente.

Estou a conseguir explicar-me? Bem, não importa, o que quero é ter uma vida intensa com os meus netos, vê-los crescer, tornarem-se adultos, descobrirem a profissão que os apaixona, encontrarem o verdadeiro amor e terem filhos. Quero que, nas suas vidas cheias e preenchidas, a morte de alguém velhinho e que teve uma vida plena seja aceite como natural. Uma perda, sempre, que provoca desgosto e saudade, claro, mas não desorientação, nem uma terrível sensação de abandono e de solidão. Por isso, sim, confirmo que troco o pranto — o inconsolável, note-se — pelo desejo de que me recordem constantemente, com aquele sorriso simultaneamente meigo, divertido e até trocista que lhes admiro tanto.

Tenho dito.


Querida Mãe,

Já sei... E se não morresse nunca e não tivéssemos de decidir a forma de luto que íamos fazer por si? É que é como a mãe diz, perder os pais é diferente e, quero recordar-lhe o que parece ter esquecido, ou seja, que os avós dos meus filhos são na verdade meus pais (e aqui veja um emoji de um sorriso).

Mas espere, já agora esclareça-nos: quer que elas fiquem moderadamente inconsoláveis na vida real, mas e nas redes sociais? É que ainda assim é algo diferente. Normalmente é só um post, por isso se calhar vai ser preciso carregar um bocadinho na tristeza, para não ficar a parecer pouco, não?

Mais a sério. Percebo o seu ponto, mas de repente ao lê-la lembrei-me da Teoria de Desenvolvimento Psicossocial de Erickson, e surgiu-me uma outra hipótese que diria mais sobre os netos que choram do que sobre a possível vida plena e longa dos avós ou da naturalidade do ciclo da vida. É que todos sabemos que muitas vezes choramos nos enterros não pela pessoa que morreu, mas pela nossa própria dor, às vezes dores antigas, pelo nosso medo da morte e pela angústia de saber que não vamos andar aqui para sempre.

Ora, segundo Erickson passamos por várias fases na vida onde tentamos equilibrar um grande conflito interno. Nos primeiros meses é a confiança/desconfiança. Pelos 2-3 anos baloiçamos entre o desejo de autonomia e a dúvida. Aos 4-5 anos, o grande conflito gere-se entre a iniciativa e a culpa enquanto na adolescência tentamos perceber quem somos, qual o nosso papel e para onde vamos. Como jovens adultos tentamos gerir o medo da solidão e a intimidade procurando perceber se somos amados e desejados. E na fase seguinte queremos deixar algo que dure: os filhos, o trabalho, algo que tenha valor.

Talvez, e só talvez, a fase em que nós nos encontramos determine também a forma como vivemos esta perda – que será maior ou menos consoante a relação que se teve, a culpa que se sentiu (fui visitar, não fui, sei que fui amado e aceite como sou ou gostava de ter tido mais tempo ou de ter sido mais autêntico, etc.). E, assim sendo, perder um avô durante a adolescência, em que tudo gira à volta do nosso umbigo, seria sempre diferente de o perder em que estamos orientados para cuidar, para valorizar as relações, a intimidade e a transgeracionalidade. Porque aos 30-40 já percebemos o valor que os avós têm. Já percebemos que algo se perde irremediavelmente quando morrerem.

Enfim, estou a divagar, o que sei é que ontem à noite sonhei — um daqueles sonhos que parecem mesmo, mesmo reais — que abraçava uma das minhas avós, e mesmo sabendo que ela era tímida e de ter pensado (no sonho) que podia ficar constrangida, dei-lhe um abraço gigante. Senti o corpo dela, reconheci-lhe o cheiro e disse-lhe que a adorava e que estava mesmo, mesmo, mesmo grata por ela estar ali comigo. Por isso se calhar vai ter que aceitar que as gémeas vão ficar inconsoláveis, ainda que continuem a viver, a amar e a rir, não porque não tiveram mãe mas porque tiveram uma avó do caraças.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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