O eleitorado esquecido

Criar condições para que a população vote é um requisito mínimo. Questões logísticas não são, e nunca serão, justificações plausíveis para que se entrave o exercício deste direito fundamental.

Em pleno frenesim de eleições autárquicas, trabalhei como inquiridora porta-a-porta para sondagens do Porto. Foi um trabalho exigente, mas que me permitiu observar de perto a diversidade de pessoas e lugares e contactar com as gritantes desigualdades que se fazem sentir na cidade.

Ao bater a uma das centenas de portas com que me cruzei, fui recebida por uma senhora invisual que dificilmente irei esquecer e que me proporcionou um importante momento reflexivo. Ao inquirir sobre se votaria nas eleições, respondeu-me com um taxativo “não”. O motivo? As eleições autárquicas são as únicas nas quais não existe matriz de voto em Braille. A sua abstenção vem em forma de protesto.

Vamos a factos: foi com a Lei Orgânica 3/2018 que se estabeleceu a criação de matrizes de voto em Braille. Portugal juntou-se assim ao restrito grupo de países europeus onde as pessoas com deficiência visual podem votar desta forma.

Foi um passo gigantesco que conferiu a autonomia e independência devidas às pessoas invisuais. Antes desta novidade legislativa, necessitavam de recorrer ao auxílio de alguém para votar. Um ato invasivo quando falamos do exercício de um direito que se consagra secreto.

De onde surge, então, o problema? Esta solução está apenas consagrada para as eleições europeias, legislativas e presidenciais. Porquê esta exclusão das eleições autárquicas? A questão é, alegadamente, logística. A Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal explicou-o perfeitamente: “nas eleições locais há mais de 300 concelhos e de 3 mil freguesias e o eleitor recebe 3 boletins de voto de cores diferentes: seria um pesadelo logístico!” Logo a seguir, no parecer, desmistifica este pesadelo: “A produção e distribuição dos boletins de voto e dos cadernos eleitorais é um procedimento maduro e eficaz que muito provavelmente poderia lidar com mais um documento.”

As autarquias são, por definição, criadas para a “prossecução de interesses próprios das populações respetivas” (art. 235.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa). Estas permitem a implementação de verdadeiras políticas de proximidade, têm a capacidade de chegar aos eleitores e de responder às específicas necessidades locais dos seus munícipes e fregueses. Há um potencial tremendo associado a esta gestão do território e que permitiria envolver as pessoas nos processos de tomada de decisão e motivá-las a participar ativamente na sociedade.

Contudo, tudo isso se mostrará impossível enquanto não ultrapassarmos estes espantalhos que se criam e colocam face ao exercício do voto. Criar condições para que a população vote é um requisito mínimo. Questões logísticas não são, e nunca serão, justificações plausíveis para que se entrave o exercício deste direito fundamental.

O caso que aqui apresento é apenas um dos muitos convites à abstenção.

Esta é a segunda eleição celebrada durante o período pandémico e não se buscou uma solução para que as pessoas infetadas com covid-19 ou em isolamento durante o dia das eleições pudessem votar. Apenas se consagrou uma solução de voto antecipado para estas pessoas (artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 3/2020, de 11 de novembro), que ocorreu entre os dias 21 e 22 de setembro e cujo período de inscrição foi entre os dias 16 e 19 de setembro. Isto significa que todas as pessoas que entraram em confinamento ou se viram infetadas após estas datas foram excluídas da equação.

Portugal não foi o único país atingido por este flagelo, tampouco o único a celebrar eleições durante este período. Outros países, como a vizinha Espanha, encontraram soluções para esta questão. Muitas delas são imperfeitas, mas podemos, pelo menos, reconhecer que existe vontade de solucionar os problemas.

É absurdo mencionar fatalmente a crescente taxa de abstenção nos momentos eleitorais quando, simultaneamente, permitimos a persistência destes entraves. Há que eliminar estes obstáculos. Se almejamos uma democracia saudável, participada e de todos, esta tem de ser acessível a todos. A luta não é só por matrizes de voto em Braille ou pelos votos das pessoas infetadas ou em isolamento. A luta é, e tem de continuar a ser, por uma democracia que garanta as condições exigíveis para que todos possamos exercer os nossos direitos de forma plena.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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