E pur si mente…

Passou um ano e meio. No fim de contas, num registo tipicamente português pode sempre dizer-se que aconteceu o que tinha de acontecer, nas nossas circunstâncias. Poderia e deveria ter sido diferente? Sem dúvida alguma: a verdade e as liberdades individuais não podem ser metidas na gaveta sempre que for conveniente.

Um ano e meio após a detecção do primeiro surto de covid-19 em Portugal, um responsável da DGS afirmou estarmos agora “no fim de uma fase pandémica” e o primeiro-ministro tem propagandeado o “controlo” da pandemia. Decorreu apenas um ano e meio desde Março de 2020, mas parece ter passado muito mais tempo. É tentador fazer uma espécie de balanço sobre esse tempo de loucura (médica, mediática e política), de que deixo aqui hoje apenas uma pequena reflexão. O meu ponto de vista é essencialmente médico, mas é inseparável dos outros dois.

Na verdade, graças sobretudo à insistência dos media, a Medicina entrou nas ruas, nas conversas, nas casas, nas mentes, e bem vejo que há agora em Portugal vários milhões de “médicos”, a maioria deles muitíssimo mais seguros e afirmativos do que os verdadeiros, prontos a dar opinião e a discutir vírus, sintomas, máscaras, tratamentos, vacinas ou doses. Sim, a loucura revelou-se sobre diversas formas, desde logo no meio médico, mas espalhou-se e contagiou toda a gente, de uma forma que se diria “exponencial”, generalizando-se a proclamação de afirmações infundadas em nome da Ciência.

É por aí que vou, pela Ciência – essa palavra tão usada e tão abusada neste ano e meio, pretexto para clickbaites e para a imposição de políticas públicas. A Ciência não é um bloco imutável de Leis divinas ou eternas; a Ciência é inovação, é mudança, é questionamento, é polémica, é incerteza. Basta relembrar Galileu ou Einstein, os dois exemplos mais óbvios de ciência que contrariava as teses científicas oficiais das respectivas épocas. É por isso hoje muito perturbador que qualquer questão, dúvida ou crítica às teses científicas oficiais acerca da covid seja rotulada de negacionismo. Galileu e Einstein seriam hoje negacionistas, sem dúvida – e perigosos, a merecer apelos de expulsão das respectivas Ordens profissionais. Não tenho qualquer dúvida de que os actuais gritos de negacionismo escondem, por trás de um pretenso fervor científico, uma profunda incapacidade de reconhecer e aceitar as limitações do próprio saber. Revelam falta de humildade, se quiserem; mostram a necessidade de (falsa) segurança num tempo incerto, parece-me; são um reflexo de medo, talvez; ou um mero engajamento político. Mas, e em todo o caso, revelam uma total ignorância do que seja Ciência.

Acresce que a Medicina não é uma Ciência exacta mas sim uma Ciência aplicada, e aplicada ao Homem – esse ser complexo em que cada caso é um caso, em que as circunstâncias físicas, psíquicas, imunológicas, nutricionais, sociais, entre muitas outras, são todas elas variáveis impossíveis de abarcar inteiramente, e muito menos de controlar. A Medicina é, por definição, uma Ciência e uma Arte: a arte de aplicar a ciência a cada caso particular. Não é pois uma Ciência exacta, não só pela complexidade do seu objecto, mas também pela incerteza da maioria dos seus julgamentos. Quando um médico define um diagnóstico e inicia o correspondente tratamento, tem a perfeita noção de que existe uma probabilidade (habitualmente baixa, mas real) de que esteja errado; tem, além disso, a perfeita noção de que existe uma outra probabilidade (igualmente baixa e igualmente real) de que o tratamento não seja eficaz ou de que prejudique o doente. Para os médicos, isto são ideias pacíficas e inerentes ao exercício da sua profissão. Para o grande público, não é assim. O grande público (no qual incluo os media, seu reflexo e seu alimento) quer e julga ver certezas em tudo – e ignora as incertezas, na covid como em todo o resto da Medicina.

Há alguns meses, em privado, uma autoridade sanitária explicou-me que “não se pode dizer a verdade às pessoas; no momento em que tiverem dúvidas, não cumprirão”. E fez-me um apelo grave e sério para que eu transigisse com a difusão pública de noções médicas parcialmente erradas, fosse acerca da gravidade da doença, da fiabilidade dos testes, ou da eficácia das vacinas. (Evidentemente, o preço a pagar pela verdade seria, como veio a ser, a acusação de negacionismo.) É nessa decisão consciente e propositada de “assustar a população”, decisão política mas apoiada por muitos médicos, que radicam as constantes mudanças de discurso das autoridades, corrigindo “certezas” erradas à medida que vai progredindo e mudando o conhecimento científico – sendo que um ano e meio continua a ser um tempo muito escasso para haver certezas definitivas acerca de muitos aspectos da covid. Basta lembrar quantas falsas certezas nos têm oferecido em todas as medidas que nos foram sendo impostas, fosse através de decretos, de marketing mais ou menos falacioso, ou de coacção.

Semear o medo para colher a aquiescência, foi esse o caminho percorrido neste ano e meio, e particularmente neste ano – com frutos, talvez, mas com um preço a pagar. Nesse preço incluo dois factores (ou duas “facturas”): a prazo, a descredibilização dos médicos (e dos políticos, mas essa já era um dado adquirido) e, no imediato, a mortalidade não-covid. No primeiro factor, julgo ser extremamente negativa a sucessiva constatação de mentiras científicas ou de interesses particulares em intervenções efectuadas por médicos; infelizmente, a descredibilização não recai apenas sobre os próprios, sobretudo quando representam estruturas da classe. No segundo factor, não tenho qualquer dúvida da existência de atrasos no diagnóstico ou no tratamento de um número considerável de doentes, porque os vejo repetidamente no meu dia-a-dia (não podendo deduzir qualquer extrapolação numérica para a totalidade do país). Nesse âmbito, a problemática do fecho de muitos centros de saúde, total ou parcialmente, é um escândalo nacional que tem passado ao lado das notícias. Em parte, foi imposto pelas autoridades sanitárias, mas em parte manteve-se (ou ainda se mantém) por medo, interesse ou comodidade dos próprios médicos.

Passou um ano e meio. No fim de contas, num registo tipicamente português pode sempre dizer-se que aconteceu o que tinha de acontecer, nas nossas circunstâncias. Julgo que o cinismo implícito no branqueamento de tantas mentiras não é aceitável. Poderia e deveria ter sido diferente? Sem dúvida alguma: a verdade e as liberdades individuais não podem ser metidas na gaveta sempre que for conveniente; os fins não justificam a manipulação de massas, sobretudo quando, como agora, não lhe antevemos um final. É certo que nunca saberemos se políticas diferentes, mais verdadeiras, teriam conduzido a resultados melhores, iguais ou piores.

Como médico, retenho a amargura de ter visto a Ciência e a Medicina terem sido repetidamente usadas em nome de interesses que só muito aparentemente são os de todos nós. Resta saber se aprendemos alguma coisa com este ano e meio ou se, em breve, talvez muito em breve, tudo recomeçará.

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