1% para a amizade!

Achamos que as amigas estão lá sempre e vamos adiando os encontros. Um desleixo em relação à amizade como se ela não fosse essencial ou como se a vida fosse eterna.

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Melissa Askew/Unsplash

O que parecia impossível aconteceu. Do alto da improbabilidade resultante de uma pandemia, da maternidade ao rubro, da ocupação do trabalho, dos compromissos e das logísticas familiares, as minhas amigas e eu conseguimos marcar uma viagem. Fomos ficar próximas alguns dias seguidos, como tanto fazíamos na infância e na adolescência e como parámos de fazer porque achamos que somos crescidas e que não temos tempo. É tão comum no alvoroço da vida fazermos cortes à amizade como no Orçamento do Estado fazer-se cortes à Cultura. Achamos que não é prioritário. A amizade fica para depois. Esta viagem foi o nosso protesto: “1% para a amizade!”

Assim como acontece com a Cultura, 1% continua a ser mais do que insuficiente, mas é um mínimo pelo qual temos de nos bater, se não damos por nós afundadas em reuniões com colegas, em discussões com maridos, em apaziguamentos de birras e em tarefas domésticas, e a nossa alma parece vazia. Falta ali qualquer coisa. Falta o abraço, o brinde, a fofoca. O contacto, o printscreen, a gargalhada.

A minha avó, com 80 anos, recebia todos os meses a visita de uma amiga. Tinha sido toda a vida a sua melhor amiga, mas ficava um pouco incomodada por ela a visitar, porque isso implicava que, nesse dia, tinha de se arranjar, de estar com disposição, de arrumar a casa. Lembro-me da sua irritação sempre que essa amiga lá ia: “Hoje não dava jeito nenhum.” Também me lembro dos seus risos quando estavam horas à conversa, do brilho no seu olhar ao relembrar velhos tempos e do bem que lhe fazia. A amiga conhecia a minha avó como ninguém e sabia perfeitamente que não queria as visitas, mas não recuava. Dizia sempre o mesmo: “A amizade tem de se regar. Se não, morre.”

Por mais triste que seja, isto não acontece só com octogenárias. Comigo acontece e com as minhas amigas também. Uma inclinação para a preguiça, uma falta de rega assumida que, por algum motivo, julgamos que não danificará a planta. Achamos que as amigas estão lá sempre e vamos adiando os encontros. Um desleixo em relação à amizade como se ela não fosse essencial ou como se a vida fosse eterna.

Lá conseguimos, de alguma forma mágica, conciliar as agendas que nem para um jantar se têm conciliado, e metemo-nos num avião rumo a Espanha. Achei que ia morrer de saudades das minhas filhas, que se ia abater sobre mim essa sombra que é a culpa de mãe. Mas não. Entrámos em modo adolescente e não nos calámos do princípio ao fim da viagem. Despejámos tudo o que tínhamos entalado de assuntos e de cusquices. Dissemos mal de pessoas. Faz parte. Aliás, a amizade é esse conluio secreto em que julgamos toda a sociedade e em que ninguém sai incólume. Falámos mal dos namorados, dos chefes, dos pais, de subcelebridades. Chegou mesmo a acontecer dizermos mal de pessoas porque elas só dizem mal de pessoas. Falámos da vida dos outros. Das nossas vidas. Rimos do quanto já chorámos por este ou aquele rapaz, chorámos do quanto já rimos juntas. Esta viagem reavivou o quentinho de um tempo em que a amizade era prioridade, em que dominava a nossa vida e em que tudo o resto era encaixado nesse eixo. Um tempo em que a conversa não acabava, em que se prolongava do dia à noite e ainda havia assunto para ser desnovelado em telefonemas intermináveis, madrugada fora. Uma urgência em contar cada novo acontecimento, em partilhar cada pequena conquista, em revelar segredos, em pedir opiniões. Como se já então soubéssemos que tínhamos de nos abastecer de amizade, porque passaríamos o resto da vida na reserva.

A viagem teve tudo o que poderíamos desejar para matar saudades. Se a amizade tem de se regar, fomos dar uma valente rega. A mergulhos, tequila e lágrimas. Houve maquilhagem no carro à pressa, reflexões profundas antes de entrar no banho, conselhos dirigidos com igual afinco para a roupa que deveríamos usar à noite e para o caminho profissional a seguir. Houve bebedeiras, ressacas, vómitos e a constatação de que já não levamos isto da mesma maneira do que há dez anos. Houve voos cancelados, choros, imprevistos. Houve partilha de rímel e de KitKats. Truques para as estrias, palestras motivacionais às quatro da manhã, sessões fotográficas prolongadas. E muitos olhares cúmplices de quem não precisa de mais nada para saber o que a outra pensa. Uma é mãe, a outra vai casar, a outra quer cinco filhos de chapéus iguais. O vestido de casamento. O dia do casamento. As relações com os pais. Os traumas do passado, as dúvidas do futuro. Revezar-nos nas camas. As memórias entrecruzadas. Criticar a condução das outras. Mais um cocktail. Os projectos. Como a vida é difícil. Aprender a dançar funk. Uma tem uma ferida outra tem um calo. Outra faz a piada Ferida Calo/Frida Kahlo. Rimos tempo demais para a qualidade da piada. Inventámos novas alcunhas. Ficámos sem bateria no telefone ao mesmo tempo. Tentámos falar espanhol. Sentimo-nos bonitas. Decidimos que só íamos lavar a louça no fim. Não houve discussões. Combinámos voltar todos os anos. Sabemos que não vamos cumprir a combinação.

O destino foi Formentera, o mar era azul, a areia branca, a comida boa. Dissemos a toda a gente que não se pode perder. Mas era pretexto. O que não se pode perder é o hábito de regar essa planta que nos oxigena. Essa coisa que nos enche o coração, nos relembra de quem somos, nos aconchega, nos irrita, nos acalma e nos faz, afinal, tanta falta. Essa coisa esquisita chamada amizade. (E já agora voos e malas também convém não perder, a ver se da próxima conseguimos.)

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