A estratégia agrícola e a agenda mediática: o exemplo do croquete

Com o sector primário não se brinca – é primário porque é a base da economia. Lembre-se o confinamento: faltaram alimentos? Não, mas também não foram as hortas nas varandas que alimentaram o país.

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Alfaia agrícola na apanha de amendoim na Quinta da Alorna, Almeirim, Ribatejo Bruno Lisita

Há uns tempos fui jantar a um restaurante dos modernos, com cozinha de autor. Naquela noite apetecia-me ter uma experiência gastronómica, assim se diz hoje. Reservei mesa, porque estes restaurantes estão sempre cheios à sexta-feira à noite. Pedi um TVDE (os antigos Uber) e lá fui ao restaurante.

Entrei e começou o ritual do costume: “O que querem tomar, etc”  Foi-me então entregue o menu, que li com inegável atenção, dado os muitos neologismos utilizados na designação dos pratos gastronómicos de elevada categoria. Após o típico momento de indecisão que carateriza a escolha do prato, optei por um desfiado de carne envolto em capa crocante de cereais das planícies do Alentejo, perfumado com azeite extra virgem de Trás-os-Montes.

Feito o pedido, esperei cerca de 20 minutos até que uma mulher na casa dos 30, com um olhar vivo e transbordando simpatia, colocou à minha frente um prato magistralmente decorado. Ao dar a primeira garfada, cheio de expectativa, percebi que afinal aquele desfiado de carne crocante não era mais do que um digno e delicioso croquete. Adoro croquetes, e, mais, tornei-me fã do croquete.

Esta minha experiência gastronómica fez-me pensar que a agricultura moderna e intensiva, que tanto espaço ocupa na agenda política atual, também é um sistema de produção de elevada eficiência na utilização dos recursos naturais, envolto numa capa de enorme tecnicidade e inovação, e perfumado pela produção de alimentos seguros e sustentáveis. Não é por se mudar o nome que as coisas se tornam diferentes. Os nutrientes de um croquete são os mesmos do desfiado. Um croquete bem feito é delicioso, um desfiado de carne crocante mal feito é um desastre. Não é o sistema produtivo que merece ser atacado, são as más práticas que devem ser denunciadas.

Apenas uma agenda ideológica intencional pode explicar o ataque que hoje se faz à agricultura moderna. Potenciam as palavras, e tão-só as palavras, para caracterizar um setor. Sendo intensivo destrói recursos; se é monocultura, mata a biodiversidade. O mediático é que conta, alimenta a luta política e aduba os interesses do ciclo eleitoral.

Este mediatismo é a universidade que gradua os “fast peritos”. Veem um documentário na Netflix e tornam-se agrónomos, nutricionistas, biólogos, veterinários e por aí fora. Os outros, os técnicos que andaram nas outras universidades, a dos livros e sebentas, são uns tristes conservadores. E, quando seria de esperar que os media pudessem ajudar a informar a população, eis que alguns, com muita responsabilidade na informação, mais lenha colocam nesta fogueira tóxica.

Lembro, como exemplo, uma reportagem apresentada em horário nobre na RTP, no programa Linha da Frente. Se forem à página desta estação lá está: “As antigas zonas de cultivo estão a desaparecer. Os especialistas falam em perigos para a saúde pública devido ao recurso a novos pesticidas usados nas monoculturas intensivas em expansão.” Meu Deus, que criminoso devo ser. Os especialistas dotados, os tais “fast peritos” que apenas sabem promover a tragédia, porque na sua existência nunca tiveram de semear um hectare, é que sabem mesmo. Os profissionais que estão no terreno, os empresários agrícolas, os engenheiros, os veterinários, esses, são os mentecaptos que “matam tudo e não deixam nada”.

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Joana Freitas

Não é preciso ler os livros da Agatha Christie para se compreender esta óbvia coincidência com a necessidade acomodar (tenho de ter cuidado nas palavras, não esteja o sr. deputado José Magalhães por aqui) as simpatias necessárias à manutenção do funcionamento do atual xadrez político. Esta reportagem nem contraditório teve. Por aqui estamos conversados. Mas passar numa estação paga com os meus impostos doeu um bocadinho.

Por que razão esta mesma estação em horário nobre não informa que hoje se utilizam menos agroquímicos do que há 20 ou 30 anos? Ou que nos bons modelos produtivos mais intensivos monitoriza-se a aplicação dos agroquímicos e da água com equipamentos de enorme rigor, recorrendo a informação de sondas, satélite, drones, robôs, como não se fazia no passado? Ou que a panóplia de pesticidas (designação totalmente amadora, mas lá está, as palavras é que contam) é hoje muito mais reduzida, porque muitas moléculas foram retiradas do mercado, e as que estão autorizadas passam por um crivo rigorosíssimo no processo de aprovação pelas entidades oficiais? A agricultura moderna em Portugal tem feito um caminho notável, e isto não se conta porquê?

Com o sector primário não se brinca – é primário porque é a base da economia. Lembre-se o confinamento: faltaram alimentos? Não, mas também não foram as hortas nas varandas que alimentaram o país.

Estar ocupado com o mediático tira tempo ao que interessa realmente — pensar nas coisas com profundidade. Estruturar uma estratégia alimentar requer tranquilidade e liberdade no pensamento e, muito importante, sentido de Estado. Quando ela se define debaixo de ciclos eleitorais ou de quadros comunitários, é uma desgraça. Os montantes luxuosos de Bruxelas têm matado a capacidade de reflexão, porque retiram a fundamental liberdade no pensamento. Toda a abordagem é feita em sua função.

Obviamente que as verbas da UE são muito importantes, mas não podem ser a única variável. Veja-se o caso dos cereais em Portugal. A produção atingiu níveis inacreditavelmente baixos por manifesta falta de viabilidade económica na produção. Sendo os cereais a base da alimentação animal e humana, e por isso absolutamente estratégicos, como foi possível chegarmos até aqui depois de tantos e continuados alertas por parte do setor? Porque ninguém se sente responsável. Os governos estão absorvidos a 100% com a gestão dos fundos comunitários e apenas se sentem avaliados pelas taxas de execução.

Em Portugal perdeu-se o sentido de Estado no setor agrícola. Os binóculos do planeamento apenas alcançam os ciclos eleitorais. Bem sei que foi criado um grupo que definiu uma estratégia, bem feita, aliás. O plano está feito, mas agora a sua aplicação depende dos fundos e os fundos dependem da agenda política. Agenda política e estratégia são como azeite e água, um não existe sem o outro, mas depois não se misturam.

Alterar esta realidade não é fácil, porque os atores não se mudam de um dia para o outro. Mas não devemos desistir. E por isso seria interessante concentrarmo-nos no importante, e o mais importante é que a agricultura tem como principal função, ontem, hoje e amanhã, a produção de alimentos. Definir uma estratégia sem este paradigma é coisa de miúdos.

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