As tábuas do caixão do MPLA: autocratismo, violência, roubos e ocultação de crimes

Angola é o exemplo de país onde sombras perigosas se mantêm persistentes. De um Estado nacional assente no primado do mais forte, que sacrifica toda uma juventude e reduz gerações à condição de homens de muletas.

Dizia o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade que preferia calar-se, esperar e decifrar as incertezas e as tragédias do mundo na esperança de que as coisas melhorassem, tal a sensação esmagadora e asfixiante que lhe causavam[1]. Um gesto de prudência que, ao mesmo tempo, reflectia a dor e a consciência de quem experimentara até ao limite os grandes sobressaltos da sua época, a II Guerra Mundial e os ventos fascistas que sopravam sobre o país latino-americano com a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).

Uma época sombria, sem dúvida, de partidos tirânicos dominantes e também de “homens partidos”, como diria ainda o mesmo poeta. Embora os tempos de hoje sejam outros, continuamos a viver situações não menos perigosas. A escuridão fomentada pelos oligarcas do mundo e pelos seus consócios, os fabricantes de armas, permanece irremediável, por assim dizer. Ressurgem os fascismos com os seus símbolos obscuros e falsamente democráticos. São tempos terrivelmente obscenos, pejados de grandes injustiças sociais e políticas, com multidões de homens degolados na sua esperança, simples “mortos faladores”, oriundos de África e de outras paragens em fogo, atoladas em ditaduras, fome e conflitos armados, e que arrastam os seus corpos famintos e doentes.

Angola é o exemplo de país onde sombras perigosas se mantêm persistentes. De um Estado nacional assente no primado do mais forte, que sacrifica toda uma juventude e reduz gerações, uma após outra, à condição de homens de muletas, despedaçados no seu âmago. Homens e mulheres a quem o regime do MPLA rouba os melhores sonhos e transfigura numa massa informe de fantasmas que vivem confinados e perdidos, sem poder fugir porque estão presos dentro de uma espiral confusa de caminhos, como se vê nas gravuras do italiano Giovanni Battista Piranesi (1720-1778), os chamados Cárceres, donde o indivíduo tenta evadir-se, mas sem êxito.

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Maurits Cornelis Escher, Relativity Lattice (surrealismo), 1953

Pois é nesse labirinto que o homem angolano esbarra nos muros intransponíveis de si mesmo. Ele próprio se apercebe que “as escadas, os corredores, as pontes [da sua cidade e do seu país] continuam noutras escadas, noutros corredores e noutras pontes até ao infinito”[2]. Em suma, num trajecto infindável donde não se consegue sair. Até mesmo a mente se dá conta, antes do corpo começar a caminhar, de que não há saída. É como andar em círculo ou nunca sair do mesmo lugar. Junto com isto, nasce o medo que desidrata as energias e abate a resistência das pessoas. Elas sentem-se naufragar, sem entusiasmo para vencer a inércia e partir daquele lugar inóspito, varrido pela mediocridade.

A ditadura do MPLA simboliza esta realidade medonha: a perfeita materialização de um delírio angustiante das suas populações, um cárcere imenso de escadas sem fim. Ou antes, um emaranhado interminável de circuitos que leva o indivíduo, em geral, a perder-se sem possibilidade de escapar.

Por se tratar de um labirinto estanque de prisioneiros, nele não se divisam saídas. No seu interior o futuro permanece congelado. Ali a vigilância dos espiões do Partido-Estado devassa todos os recantos da vida das pessoas, até as suas consciências. Um imenso cortejo de burocratas garante a marcha dos serviços. Neles são inconfundíveis as marcas do cinzentismo, da ausência de probidade e o vazio de ideias. Meros delegados de serventia, assim os podemos designar, cobertos por adornos de autoridade e poder, mas sem noção de nada. Não sabem o que fazer com o país, não olham para o bem comum, para a felicidade e bem-estar do corpo social, apenas o dilaceram, o rebaixam nos seus direitos sociais e na sua ínfima liberdade.

As últimas quatro décadas e meia de governação do MPLA nada trouxeram de razoável a não ser um somatório de processos de destruição da substância do Estado com origem na depredação das riquezas do país e saque continuado. O povo continua a ser apoucado, desprezado e traído nos seus sonhos sobre o que os “revolucionários” da luta de libertação nacional lhe prometeram: uma Angola resgatada dos velhos cativeiros e das asfixias do passado colonial.

O sentimento que as pessoas carregam nos dias actuais assemelha-se a um espelho quebrado, tão grande é o pessimismo e a descrença que lhes oprimem a alma. Elas vêem as suas vidas individuais e colectivas calcinadas no desespero por se sentirem privadas de futuro, de um futuro que sonhavam promissor pela mão de homens íntegros e nobres que supunham saber resistir às tentações deletérias do poder. Afinal, o que lhes calhou em sorte foi serem dirigidas por “aves de rapina”, por grupos mafiosos. Por gente que nunca se preocupou em ter um pensamento económico e social estruturado e racional, que empurrra as populações rumo à catástrofe, rumo a um destino incomensurável onde só existem trevas sob a forma de mais dor, mais pobreza, mais doenças, menos escolaridade e educação e muita humilhação.

Quem governa são os piores, faz tempo que o venho dizendo. Basta ser fiel ao MPLA e servil ao soberano de plantão para se alcançar um lugar ao sol feito de privilégios e prerrogativas sob o acicate da cupidez, da venalidade e do enriquecimento fácil. A competência e a integridade são talismãs de somenos importância. Quanto mais vulgar o agente superior do Estado, melhor. De preferência que seja um lacaio de alto coturno ou um “homem sem personalidade”, sempre pronto a prostrar-se aos pés do Partido e a cumprir os seus mandamentos.

Como se tem observado, cada vez que entra em cena um novo ministro, é notório estar-se em presença de mais um pássaro de maus presságios que traz incorporada em si a herança da demagogia (sob a forma de soberba e desprezo pelas leis), a que se junta a ignorância, a inépcia e a imoralidade e todo um caleidoscópio de maus costumes e condutas sociais que ofendem o sentimento público. Entram neste capítulo o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o abuso sexual de mulheres, ameaças a pessoas humildes, extorsão de bens alheios e um sem-fim de outros comportamentos reprováveis. Parece que ingressar no grémio dos poderosos é como atravessar um pântano, fica-se sujo. Uma herança maldita que reflecte bem o rosto da kakistocracia, termo cunhado por Políbio, historiador grego (200 a. C.–118 a. C.), para designar o “governo dos piores”, dos corruptos[3].

Efectivamente, no reino do MPLA desprezam-se os dotes pessoais e o talento, mas acima de tudo a inteligência crítica, tida por suspeita. Tem sido este o compasso da história política desde o início e já o era no período da luta armada. Sob a prevalência deste espírito de baixo nível, nasceu uma estrutura mediocrática de poder responsável por aquilo a que o escritor e filósofo italo-argentino José Ingenieros (1877-1925) chama de “hipocrisia, servilismo e rotina” na paisagem social e política de um país. Mediocracia que, em resumidas palavras, impede o salto, o avanço e o progresso de uma nação[4]. Angola nunca saiu das cavernas da mediocridade e da intolerância em que se afundou na ditadura de Agostinho Neto, mesmo tendo em conta o longevo consulado de José Eduardo dos Santos no decurso do qual pouquíssimos avanços se obtiveram em matéria de bom governo, liberdade de expressão e valorização efectiva dos melhores cérebros. Os critérios adoptados em todas as decisões não raro estiveram atrelados ao credo político, à cor da pele e a outros critérios não menos absurdos e funestos.

É certo que, em oposição à crueldade política de Neto e à sua invulgar impiedade, o sucessor fantasiou um ordenamento jurídico-político sui generis, de “democracia” e de “Estado de Direito”, de efeitos cénicos que usou para ocultar as grandes fissuras da história recente do país como Estado independente. Para tanto, justificou-se aos olhos da comunidade internacional que Angola, após o calar das armas da guerra civil, passava por ser então um país diferente do que fora, redimido do seu passado de opróbrios e, nesse sentido, em condições de ser aceite nos templos da grande família democrática do mundo. Uma burla estratégica, reconheça-se, que rendeu enormes proveitos a Luanda. A Internacional Socialista foi a primeira entidade supra-nacional a não perder tempo, franqueou os seus grandes salões ao MPLA e admitiu-o como membro de pleno direito desta organização.

Na ordem prática das coisas, porém, o novo modelo de regime “restaurado” não se alterou de modo substancial. Modificou-se, sim, o corpus doutrinário do Partido, substituiu-se o socialismo da imbecilidade herdado de Neto por um capitalismo predatório. Permito-me esta ironia com o pretexto de realçar a crassa ignorância das elites políticas dirigentes do MPLA com respeito ao socialismo marxista e as sandices com que enchiam a boca cada vez que falavam da via socialista de desenvolvimento. Num país onde os exemplos de iliteracia são chocantes e até patentes nas classes superiores, é muito pouco provável que esses senhores algum dia tenham bebido lições na leitura de, pelo menos, um clássico da literatura marxista. É um segmento social retrógrado, movido tão-só pela avidez do dinheiro.

Atirado o socialismo pela borda fora, os próceres do regime ensairam novas políticas de governo e novas arquitecturas de gestão económica. Pela mão de juristas hábeis, criaram-se mecanismos adequados à instauração de um novo sistema de evolução nacional, de contornos capitalistas, desde logo orientado a promover os interesses rapaces dos donos do poder. Foi assim que, à sombra deste paradigma oligárquico, uma família ancorada num selecto grupo de personalidades civis e militares se aproveitou da sua posição de preponderância para privatizar o Estado em proveito próprio e sangrar as riquezas nacionais e, em paralelo, desterrar para as fronteiras da estagnação a maioria da população que se esvai até hoje nos estertores do desalento e da morte.

O resto, na esfera política, conservou-se irretocável, e o mesmo se pode dizer dos antigos dispositivos intimidantes do regime. Somente se reformulou o modus operandi da polícia política e ofereceu-se da ditadura uma imagem mais branda. Imperativos ditados pelo grande jogo da política internacional obrigaram o regime a dar este passo. A queda do Muro de Berlim em 1989 e a desintegração do Império Soviético, em grande parte, contribuíram para que algo se movesse nas rígidas engrenagens do MPLA. No essencial, contudo, o Partido e as suas estruturas de direcção estatal não abriram mão de muita coisa, salvo em pequenas aberturas cosmeticamente crismadas de reformas. Novas regras do jogo se forjaram, uma das quais a instituição do parlamento com a sua folclórica combinação de meios e representações partidárias. Ainda assim, o domínio total do Partido e do Estado sobre a vida do país aprofundou-se.

Para quem conheça bem a personalidade política do MPLA (isto é, a sua história desde as origens) não há como se deixar enganar com os ritos e as encenações do parlamento com os seus atavios de pluralidade. Ali a tão proclamada democracia que se diz ser o espelho desse areópago não passa de uma farsa, como, aliás, o são os demais órgãos intitulados de soberania. Em vez de ser uma instância emblemática da vontade popular, a assembleia legislativa tem-se revelado uma mera emanação da ditadura, uma casa às avessas, de liturgias e encenações folclóricas, onde nada se faz senão conforme os procedimentos, normas e actos ditados pelo Partido-Estado.

Um teatro de marionetas, para sermos mais precisos, controlado pela mão-de-ferro do MPLA e pelo domínio de um burocratismo ultracentralista. E por expedientes autoritários. Ali apenas se vota o que o grande partido quer. Fragilizada e sem expressão, a oposição política é incapaz de se contrapor às decisões draconianas do governo central, inclusive em decisões vitais concernentes ao orçamento de Estado. Vai cumprindo, como pode, o papel de figurante num grande espectáculo de fingimentos e imposturas. Simulando funcionar, o parlamento não funciona, basta olhar para o ditador e a atitude de desdém que vota àquela instituição.

No mesmo atoleiro partidocrata vegeta o sistema de Justiça com todos os seus aparelhos inertes e obsequiosamente vergados ao MPLA. No seu palco exibem-se mandarins engalanados de toga, especializados na capitulação do Direito à política e na vassalagem aos arbítrios do autocrata que tudo vigia do alto da pirâmide do seu poder. Conhecidos pelos seus métodos atrabiliários, os órgãos de Justiça simbolizam o que de pior medra nas entranhas do MPLA. Nos recessos dos seus edifícios forjam-se falsas denúncias contra inimigos políticos e inventam-se conspirações, dissidências e golpes de Estado, cujos registos, por serem bem recentes, permanecem vivos na memória de toda a sociedade.

Exemplo maior é, com certeza, o Tribunal Constitucional, conhecido pela sua muralha de armas contra quem quer que ameace a hegemonia do MPLA. Ali a ideologia do Partido funde-se com a normatividade das leis. A bem dizer só colhe as graças do poder instituído quem está do lado do MPLA. A estes adeptos confere-se-lhes o brasão de “pessoas de bem”, assim o declarou recentemente um hierarca do governo que não teve o menor pejo em ultrajar cidadãos de outras sensibilidades políticas. Estar contra ou ser crítico equivale a ser inimigo do Estado, inimigo de Angola.

Prova mais cristalina do que esta de como pensa o MPLA, nem nos anais da ficção. Enquanto o país definha esmagado por um populismo nacionalista tendencialmente de direita (num outro artigo abordarei este tópico), o cidadão sente-se apavorado e embrutecido pela peçonha de um passado de escuridão que volta sempre para o aterrorizar. Na lembrança dos angolanos ainda lateja o que foi a sementeira de ódio criada e promovida pela ditadura de Neto para distinguir os “bons” dos “maus” angolanos”, e como se impregnou toda a atmosfera social do país com o ferrete da suspeita. Era preciso desconfiar do vizinho, do colega de trabalho, de escola e do desporto, assim como de outras actividades, incluindo membros da família, não fosse alguém ser inimigo do MPLA. Tempos sombrios por mim vividos na pele e que, lamentavelmente, não se desvaneceram. Uma alienação total, só tornada possível pela entronização de uma gigantesca mentira sobre o papel do MPLA como uma espécie de deus ex machina, a quem a história conferiu o dever de salvar Angola e os seus filhos de todas as desgraças presentes e futuras.

Muita gente acreditou em semelhante fábula, tal como ainda acredita na capacidade do MPLA se renovar e ser realmente uma força democrática. Uma possibilidade que antecipo ser cada vez mais remota. A história é rica de ensinamentos, nenhuma organização política fechada, alimentada por uma soberba messiânica, é capaz de se reformar. Todavia, prevalece uma outra razão mais simples: a índole dos seus cortesãos. No MPLA a situação é particularmente grave, as criaturas que o servem em postos de chefia são incrivelmente desonestas. Uma gangue de indivíduos de mau carácter, entre os quais são raros os que não tenham culpas por crimes horríveis. A maioria, fosse o país um Estado de direito rigorosamente sintonizado com as leis e com a aplicação das Convenções internacionais, não escaparia de enfrentar o julgamento de tribunais especiais.

Resta aguardar a morte do MPLA e de todos os entulhos que o acompanham. O que por ora sobrevive é uma enorme carcaça, comparável à de um navio vetusto, carcomida pela podridão e que se afunda no oceano sombrio das suas vilanias.
 


[1] “Nosso Tempo” [dedicado a Osvaldo Alves]. In: Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo, Rio de Janeiro, São Paulo, Editora Record, 21.ª edição, 2000, p. 30.

[2] Metáfora de Jorge Schwartz, especialista brasileiro em literaturas e artes plásticas, exposta no seu texto “Apresentação”. In: Catálogo: Cárceres a Duas Vozes ∕∕ Piranesi e Ana Maria Tavares, São Paulo, Museu Lasar Segall, Instituto Brasileiro de Museus (Ibram. MinC), p. 19.

[3] Michelangelo Bovero. Una Gramatica De La Democracia. Contra el Gobierno de los Peores [traducción del italiano de Lorenzo Córdova Vianello], Madrid, Editorial. Trottta, 2002, pp. 137-149.

[4]  José Ingenieros. O Homem Medíocre [tradução Lycurgo de Castro Santos], São Paulo, Ícone Editora, 2.ª edição, 2012, p. 10.

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