Saber perder

O que assaltava os meus pensamentos era o saber envelhecer. Saber perder faculdades e manter a vontade de atravessar a rua com determinação. Saber perder é um dos maiores segredos para a nossa felicidade.

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PAULO PIMENTA

Eu estava a andar de bicicleta, numa estrada imediatamente paralela a uma estrada nacional. Tive todo o tempo do mundo para observar com calma o que se atravessava no meu campo de visão. De um lado da estrada, duas ou três casas, e do outro os contentores do lixo verdes, grandes. No meio da estrada uma senhora a atravessar muito lentamente. Chamou-me a atenção.

À medida que me vou aproximando, vou também abrandando para responder à minha curiosidade. Cabelo todo branco, estatura média-baixa, algum excesso de peso, pernas inchadas ao ponto que as pregas de edema ultrapassavam os contornos das socas, corpo curvado, uma muleta em cada mão, bem arranjada, e um saco plástico branco de supermercado pendurado na pega da muleta da mão esquerda.

O que mais me impressionava continuava a ser a lentidão e a sua directa proporção com o esforço. Cada um dos seus quatro apoios se movia, um de cada vez. Cada pé, cada muleta, conquistavam não mais do que uns cinco centímetros a cada investida. Era óbvio que vinha de uma das casas, e que o destino era os contentores do lixo. Estaria a mais de meio desta pequena, longa e nobre conquista.

Eu hesitei, numa mistura de pensamentos ao passar pela senhora, enquanto espreito por cima do meu ombro para a ver de frente. Óculos de lentes grossíssimas, pele enrugada, cara de esforço e determinação. Já a uns 20 ou 30 metros passados da senhora, decidi dar meia volta. O saco de plástico vai a baloiçar na pega da muleta. Invadindo o seu espaço sem qualquer convite perguntei: “Posso ajudar?” Dirigiu-me o olhar de uma forma seca, inexpressiva e prontamente respondeu: “Não, obrigado.” Não sei se bem ou mal, mas o meu instinto foi de insistência: “Deixe-me por favor ajudá-la”, enquanto saía da bicicleta, fui com a mão ao saco plástico e estiquei-o para o colocar no contentor. Meio que contrariada ouvi um tímido “obrigado”, enquanto planeava a manobra complexa de rotação de 180º de volta a casa, ao mesmo tempo que eu seguia o meu caminho.

O saco devia pesar uns 500 gramas, estava tão leve que parecia vazio. O percurso que eu poupei à senhora seriam uns dois metros de ida e dois metros de volta, mas a primeira pergunta que fiz a mim próprio, enquanto pedalava já bem longe, foi: “Como será que ela tinha força para pôr o saco, ainda que leve, no contentor que é tão alto, partindo de um equilíbrio tão frágil?...”

Fui pedalando, mas a imagem da senhora quase estática a atravessar a rua não me saía da cabeça. Coisas tão simples para uns, são uma tarefa tão complicada para outros. Como é que será que a senhora se consegue vestir? Como é que se faz a lida da casa com tão pouca mobilidade? Será que ia ao lixo todos os dias? Será que era o seu “passeio” diário? Será que eu a ajudei ou ajudei-me a mim próprio? Será que ao insistir lhe retirei a grande vitória de cada dia que lhe permite sentir-se autónoma? Ela recusou a minha ajuda. Terá sido por reflexo, por timidez, por medo do desconhecido ou por autodeterminação?

Mas o que assaltava os meus pensamentos era o saber envelhecer. Saber perder faculdades e manter a vontade de atravessar a rua com determinação. Saber perder é um dos maiores segredos para a nossa felicidade que ninguém nos ensina, numa sociedade patologicamente obcecada em ganhar. Saber aproveitar o que temos, fazer o que podemos, e não chorar pelo que lá vai... Enquanto reflectia sobre as limitações da senhora e a sua vontade de as superar, perguntava-me: “E tu, de que te queixas? Quais são mesmo os teus problemas?”

Não sei se ajudei a senhora, mas sei o quanto ela me ajudou a mim.

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