Antero, 130 anos depois: a crise moral impulsionou o suicídio

Portugal mergulhara numa situação insuportável: multiplicava-se o oportunismo, a ausência de carácter e a falta de vergonha

A vida tornara-se insuportável. Antero não conseguia cura para as doenças que o torturavam. Mas a outra tortura e mal-estar que o dominavam resultavam da situação do país. Portugal debatia-se com a ausência de soluções para vencer a crise. Crise aguda: crise política e crise social. Crise, acima de tudo, moral. O entusiasmo de Antero, a entrega incondicional à vida e a aposta nos ideais humanitários converteram-se em desalento, em aversão, em horror: “Com largo voo, penetrei na esfera/ […] Livre, contente e bom, como os que moram/ Entre os astros, na eterna primavera”. O contacto direto com a realidade quotidiana desfez todas as ilusões. Por tudo isto exclama: “Porque irrompe no azul do puro amor,/ O sopro do desejo pestilente?/ […] Só ressuma veneno e podridão/ […] No combate do mundo traiçoeiro”.

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Antero retratado por Columbano, 1889 (pormenor, MNAC)

Antero, a 11 de Setembro de 1891 – completam-se 130 anos – suicidou-se em Ponta Delgada, numa das esquinas do Campo de São Francisco. Para tentar definir o estado de perturbação, nessa tarde longínqua, húmida e cinzenta, recorro a poesias do próprio Antero para explicar o desfecho terminal: “E tudo, em torno, é dúvida e luto”; […] “Cai do espaço, pesada, silenciosa,/ A tristeza das coisas, lentamente”. […] “A ave tem o voo e a liberdade,/ O homem tem os muros da prisão”.

Para Eduardo Lourenço, Antero é “a maior referência intelectual portuguesa” que marcou o “início da nossa modernidade”. Representa “o seu próprio ato fundador” (Antero, Portugal como Tragédia, edições Gulbenkian). Evidencia-se na criação poética – e esta é a primeira leitura das Odes Modernas – não apenas ao nível da ideia, no domínio da filosofia e da poesia social, a “poesia revolucionária do futuro”. Estendeu-se a novas formas de expressão literária. Abriu caminho ao imaginário de Cesário Verde, de Camilo Pessanha e de Fernando Pessoa.

Revestiu-se, ainda, de maior impacto na afirmação da modernidade o discurso que Antero proferiu na sessão inaugural das Conferencias do Casino (1871). Intitula-se Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. A expulsão dos judeus, em 1496, a instauração da Inquisição, 1536, o catolicismo imposto pelo Concílio de Trento (1563), destacam-se entre as mais graves consequências que impediram Portugal de ter acesso às grandes aquisições filosóficas e científicas que renovaram a Europa.

Cento e trinta anos depois da morte voluntária de Antero continua a ser muito enriquecedora a reflexão dos vários ciclos da criação do poeta e da obra do “prosador de génio”. E, também, a reflexão em torno do percurso exemplar do homem e do cidadão. Remete-nos, quantas vezes, para as vulnerabilidades do mundo contemporâneo.

O tempo é outro, o discurso tem outra linguagem. Mas perdura a oportunidade das suas advertências. A frontalidade dos seus clamores: “amei os homens e sonhei ventura/ pela Justiça heroica, ao mundo inteiro/ pelo Direito ergui a voz ardente/ no meio das revoltas homicidas;/ caminhando entre raças oprimidas/ fi-las surgir como um clarim fremente”. E era com enorme ansiedade que interrogava os homens indiferentes e dispersos: “Quando há-de vir o dia da Justiça?/ Quando há-de vir o dia do resgate?/ Traiu-me o gládio, em meio do combate/ e semeei na areia movediça”.

A insatisfação excedia todos os limites. Recorria a Deus. E interpela-o com veemência: “Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo/ fiz do seu nome fortaleza e escudo”;/ invoquei-o nas horas afrontosas/ em que o mal e o pecado dão assalto/; procurei-o com ânsia e sobressalto”./ Ai dos que juntam com fervor as mãos! / Ai dos que crêem, ai dos que inda esperam!” As súplicas de Antero caíam no vazio. Um silêncio mais espesso confundiu-se com todas as lágrimas. Imperturbavelmente: “rolam, desabam, com fragor e espanto/ os astros pelo céu, frios e escuros”.

Em cada dia e em cada ano que passavam Antero não conseguia qualquer resposta aos seus apelos de sempre: “Pelo mundo procuro um Deus clemente,/ Mas a ara só lhe encontro… nua e velha…/ Não é mortal o que eu em ti adoro./ Que és tu aqui? olhar de piedade,/ Gota de mel em taça de venenos…/ Pura essência das lágrimas que choro/ E sonho dos meus sonhos! se és verdade,/ Descobre-te, visão, no céu ao menos!” Os céus permaneciam distantes e impassíveis nas alturas.

A classe política – tal como hoje – refugiava-se em vagos compromissos. Os intelectuais não se empenhavam em concretizar um projeto concreto e viável para transformar o presente e construir o futuro. Portugal mergulhara num conflito de interesses, numa teia de ódios e num emaranhado de ambições. O desgaste provocado nos jogos políticos e nas retóricas parlamentares esgotava as energias para enfrentar o medo, transpor a insegurança e ultrapassar o conformismo e o marasmo.

Antero deplorava tudo o que via e tudo o que ouvia. Não era possível mais. Não era possível pior: “Que vento de ruína bate os muros,/ [...] E deixando pender as mãos cansadas,/ [...] Num gesto inerte ao abandono extremo. Mas a indignação tornara-se implacável perante o oportunismo, a ausência de carácter e a falta de vergonha. Também foi isto que levou Antero a disparar o revólver no céu da boca. Nem o primeiro, nem o segundo tiro o fulminaram. Tal como desejava. De nada valeu uma âncora incorporada, por cima do banco, na cerca do Convento. Nem a inscrição, com toda a nitidez, da palavra esperança. Era o esvaziar dos símbolos e dos mitos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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