Os bufetes escolares e os indignados do costume

O argumento “não se deve proibir, deve-se ensinar” é válido, até porque o consumo destes alimentos nas escolas não passou a ser proibido. A sua venda é que sim. Seria o mesmo que as escolas alertarem para os malefícios do consumo de álcool e tabaco, mas venderem os mesmos lá dentro

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Máquinas de venda automática de alimentos e bebidas na Escola Básica e Secundária de Carcavelos Rui Gaudêncio

Existe sempre um conjunto de pessoas que todos os dias quando se levanta da cama, olha para o telemóvel, abre as suas redes sociais e questiona a si mesmo: “Com o que é que eu me vou indignar hoje?”

E se poderíamos pensar que uma decisão hipoteticamente consensual (melhorar a oferta alimentar nas escolas) tornada pública num momento em que grande parte do país está de férias seria aceite sem grandes ondas, o que se verificou foi o oposto. Deputados a contestar a decisão sob o argumento que até seria compreensível proibir a venda de croissants, pizzas e chocolates, mas um abuso fazer o mesmo a alimentos tradicionais como pão com chouriço, empadas e pastéis de bacalhau (até porque o nosso fígado, pâncreas e artérias sabem perfeitamente a diferença entre o açúcar, gordura e colesterol proveniente de alimentos “industriais” ou “caseirinhos”); capas de jornais a anunciar “Levantamento de Rancho” com testemunhos de pais indignados; e comparações absurdas entre vacinação e disponibilidade alimentar nas escolas.

É interessante constatar que esta medida mais não é do que dizer “malta, agora é a sério” relativamente às Orientações para os Bufetes Escolares publicadas já em 2012. Como essas orientações à época foram exactamente isso, “orientações” (e não algo obrigatório), o que aconteceu nos bufetes escolares e máquinas de vending foi que, bem “à portuguesa”, se foi “deixando andar”. Um estudo feito em 2018 concluiu que apenas 1,3% das 161 escolas analisadas respeitavam a proporcionalidade entre os alimentos e promover e a evitar preconizada nestas orientações, o que é sintomático de como as coisas funcionam na nossa cultura. Apelar ao “bom senso” e à “educação alimentar” é bonito de dizer, mas só quando se tomam medidas mais drásticas se observam resultados. A taxação das bebidas açucaradas em 2017 fez com que o seu consumo diminuísse e mais importante ainda, que a indústria fizesse um esforço em reduzir a quantidade de açúcar das próprias bebidas. E possivelmente não aconteceu o mesmo em relação ao sal porque uma proposta semelhante foi chumbada no Parlamento.

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É fundamental não misturar conceitos quando falamos de reeducação alimentar numa população tão sensível e particular como as crianças e adolescentes. Referir que nestas idades “o fruto proibido é o mais apetecido” é integralmente verdade e ninguém consegue mudar hábitos alimentares nestas faixas etárias com um discurso demasiado moralista e paternalista contra açúcares, gorduras, fast food e afins.

Mas façamos o seguinte exercício: um jovem vai a um nutricionista (que já será uma reduzida percentagem) e esse nutricionista tem uma postura mais flexível não apresentando uma lista de alimentos proibidos (que, já agora, também é uma reduzida percentagem). Chegam os dois a um acordo no qual ele pode comer 2 a 3 bolos/chocolates/refeições de fast food por semana (idealmente ao fim-de-semana e em contexto social), sob o compromisso de ter uma alimentação quase “perfeita” durante a semana, mas depois em todos os intervalos entre aulas passa no bufete e tem à sua disposição uma série de alimentos muito tentadores. O que acham que vai acontecer? Exactamente o mesmo que acontece aos adultos quando compram esses mesmos alimentos para casa e no final do jantar têm o “diabinho” a falar ao ouvido para irem comer batatas fritas, chocolates, bolachas e outras coisas que caso não estivessem em casa não viveriam esse drama. Da mesma forma que irá comer sempre mais se levar tachos/panelas/travessas para a mesa em vez de levar o prato empratado, dando razão à célebre máxima “eu não paro de comer quando deixo de ter fome, eu paro de comer quando a comida acaba”.

E se considera que estes últimos argumentos são “achismos”, também do ponto de vista biológico existem razões objectivas para controlar o acesso diário a alguns alimentos nestas idades. Durante a infância e adolescência, o córtex pré-frontal (zona do cérebro envolvida na tomada de decisão, autocontrolo e busca de recompensa) ainda está em desenvolvimento, o que faz com que seja particularmente difícil resistir a alimentos com alto valor hedónico nestas idades e são mesmo as crianças com maior índice de massa corporal que têm menor actividade nesta área do cérebro.

Por isso a conclusão destes estudos, vem dar totalmente razão à medida agora tomada: a efectividade das intervenções que se focam no autocontrolo na alimentação ou que chamam a atenção para os malefícios de uma alimentação desequilibrada na saúde será menor nas crianças mais novas e nas crianças já com excesso de peso e obesidade.

Por outro lado, intervenções que se destinem a alterar o ambiente obesogénico em volta dessas mesmas crianças serão sempre mais efectivas. Não é por acaso que se deixarmos as crianças e os adolescentes mais “livres” na sua escolha alimentar e num contexto mais obesogénico como acontece nos EUA, o resultado seja de que quase 70% das calorias ingeridas entre os 2 e os 19 anos sejam provenientes de alimentos ultraprocessados.

O argumento “não se deve proibir, deve-se ensinar” é válido, até porque o consumo destes alimentos nas escolas não passou a ser proibido. A sua venda é que sim. Seria o mesmo que as escolas alertarem para os malefícios do consumo de álcool e tabaco, mas venderem os mesmos lá dentro. E quanto à reeducação alimentar nas escolas, a partir do momento em que existem apenas 2 nutricionistas no Ministério da Educação para 1,3 milhões de alunos (mesmo tendo em conta outros nutricionistas envolvidos no processo de elaboração das ementas escolares nas empresas de catering e em projectos de educação alimentar nas autarquias) e que o concurso para a sua contratação está atrasado, dá para perceber bem que o caminho a percorrer é ainda longo mas que valerá a pena.

Fruto das mudanças no ambiente alimentar das escolas e das famílias, apesar dos números estarem ainda elevados, Portugal foi dos países europeus onde mais diminuiu a prevalência de excesso de peso e obesidade infantil em Portugal nos rapazes entre os 6 e 8 anos,  e de 2008 a 2019 estes números baixaram de 37,9% para os 29,6%.

Por isso a manada do “é proibido proibir” e os “tudólogos” que inundam as nossas televisões e rádios que possuem opinião sobre tudo, mesmo que não tenham formação técnica para o mesmo, poderiam fazer um favor a si mesmos e deixar os assuntos técnicos para os técnicos, sobretudo os que se pautam pela melhor evidência científica e não se intitulam “pela verdade”. A ciência e a saúde em Portugal agradecem.

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