Algumas capacidades mentais podem melhorar com o envelhecimento

Ainda que o envelhecimento represente um declínio das bases cerebrais, algumas das funções podem até ser reforçadas “com base na experiência, na prática, no uso diário”, refere João Veríssimo, autor do estudo.

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Há capacidades mentais que podem melhorar com o envelhecimento e proteger o declínio do cérebro, de acordo com um estudo publicado esta quinta-feira na revista Nature Human Behaviour, que sugere essa possibilidade.

Segundo a investigação, em que participaram investigadores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e da Universidade de Georgetown, nos EUA, a capacidade de dar atenção a novas informações e de nos focarmos no que é importante em cada situação pode melhorar em indivíduos mais velhos e funcionar como escudo protector contra o declínio do cérebro.

Em declarações à agência Lusa, João Veríssimo, psicólogo e investigador no Centro de Linguística da FLUL, sublinhou que “alguns desses indícios já existiam em literatura anterior” e foram agora detectados “num estudo maior e mais cuidadoso, relativamente grande, comparado aos anteriores”, em que participaram 702 pessoas, entre os 58 e os 98 anos, em Taiwan. Em duas das três funções examinadas, através de tarefas comportamentais, com o objectivo de medir a eficiência dos participantes nessas funções cerebrais, “as pessoas mais velhas tiveram melhores resultados”, frisou João Veríssimo.

Enquanto os dados recolhidos indicaram que a capacidade de alerta diminuiu, a função de orientação (que nos permite dirigir o foco para determinada área) e a função de inibição executiva (que permite gerir a informação, receber informação contraditória e perceber o que é mais importante, para tomar decisões) melhoraram em pessoas mais velhas.

João Veríssimo pormenorizou que, enquanto na rede de orientação, não se verificou uma quebra nas melhorias detectadas em função da idade e os participantes no estudo executaram as tarefas pedidas “de forma mais eficiente e um bocadinho mais rápida”, no caso da rede de inibição executiva foram observadas melhorias no desempenho até cerca dos 76 aos 78 anos. “A partir daí as melhorias começam a achatar e possivelmente até começamos a encontrar declínios”, referiu o investigador.

Num comunicado divulgado pela FLUL, é sublinhado que os autores lançam a hipótese de o declínio da capacidade de alerta se justificar “por corresponder a um estado básico de vigilância que não pode ser treinado”. Embora se trate de “uma ilação” com base na observação feita, e que importa densificar com estudos complementares, os autores adiantam a possibilidade de que “a orientação e a inibição executiva são capacidades que podem melhorar à medida que são exercitadas, compensando-se os declínios neurológicos subjacentes”.

“Em geral, pensava-se que este tipo de funções se perdem com o envelhecimento, degradam-se, e o que os nossos resultados parecem sugerir é que temos de olhar para isto de uma forma um bocadinho mais fina”, alertou João Veríssimo, que afirmou existir “uma tendência muito forte para se olhar para a perda e menos para os ganhos e para as coisas que se vão tornando melhores com a idade, à medida que são praticadas”.

Da tomada de decisões à leitura

Ainda que não seja peremptório ao afirmar se essas melhorias registadas resultam de um estado natural dos participantes no estudo ou se essas competências só melhoram se forem exercitadas, o investigador da FLUL atribui-as “à experiência, à vida que uma pessoa mais velha tem, à sua acumulação de conhecimento, de prática e ao exercício contínuo dessas competências”. “A explicação que oferecemos é que, possivelmente, estará relacionada com experiência”, acentuou João Veríssimo. “[Os resultados] foram observados em competências envolvidas em praticamente tudo o que fazemos” no quotidiano e de que a nossa mente está continuamente a fazer uso, seja na linguagem, para tomar decisões, gerir informação, em questões de raciocínio, habilidades de cálculo, de leitura ou de navegação, explicou.

Ainda que o envelhecimento represente um declínio das bases cerebrais, algumas das funções podem até ser reforçadas “com base na experiência, na prática, no uso diário”, sustentou João Veríssimo, que prefere não apontar formas de exercitar essas capacidades, por o estudo não se ter focado “nesse aspecto prático”. O psicólogo e investigador principal do estudo, de que Michael Ullman, professor no Departamento de Neurociências da Universidade de Georgetown é também autor, enfatizou que os resultados oferecem uma perspectiva “mais positiva” sobre o envelhecimento, habitualmente associado à redução das capacidades mentais.

“A contribuição principal do estudo, de certa forma, é mais teórica, no sentido em que nos mostra um exemplo de que à medida que vamos ficando mais velhos podemos, de facto, em algumas coisas, possivelmente ficar melhor. Essa é a grande mensagem, que vai contra essa visão mais pessimista de que tudo se perde”, acentuou João Veríssimo. O investigador acrescentou: “Se calhar, não faz muito sentido pensarmos que quando envelhecemos, tudo, de uma forma generalizada, se perde.”

O professor da FLUL salientou que algumas funções “poderão até melhorar pelo exercício, pela prática e pela acumulação de conhecimento durante a vida”. João Veríssimo considera que os resultados “abrem portas” a outras investigações que podem levar a conclusões sobre o que poderá ser feito em termos de intervenção para treinar competências para contrariar o declínio do envelhecimento, nomeadamente com acções direccionadas tanto para o envelhecimento saudável como para perturbações relacionadas com a idade, “eventualmente até demências”, como a doença de Alzheimer. “Isto ainda está numa fase muito especulativa. Nós imaginamos que poderá ser possível, e imaginamos que seria óptimo, numa investigação futura, tentarmos conseguir contrariar o envelhecimento com essa prática”, destacou o principal autor do estudo.

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