O bom cão a casa torna

Naquele domingo soalheiro de Agosto, não se sabe por que motivo, talvez se tenha distraído com um rabo feminino de cauda, o Belenenses desapareceu. Procuraram-no por toda a parte, desde a tarde até ao anoitecer, e nada.

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JR Harris/Unsplash

O Belenenses, como qualquer cão, não sabe o que é futebol. Baptizaram-no assim quando o viram ainda pequeno e esfomeado mesmo ao pé do estádio de Belém. Quem resgatou o Belenenses da rua não era propriamente um benfeitor, tinha aliás alguns problemas com a justiça, mas gostava muito de animais, especialmente de cães. O dono do Belenenses, o Artur, viu-se a certa altura forçado a confiar o Belenenses ao seu único amigo — um homem da mesma idade, com quem tinha dividido posto numa fábrica de cortiça, pai de quatro filhos e com um grave problema com a bebida — para que pudesse mudar de cidade sempre que fosse necessário.

Tratava-se de um rafeiro magricela de pêlo curto acinzentado, brincalhão e amigo das crianças. O Belenenses tornou-se logo o grande companheiro dos filhos do seu novo dono; uns miúdos pobres mas sadios, que viviam numa barraca asseada num bairro de gente trabalhadora, o bairro do Chegadinho. O Belenenses não usava coleira nem trela e andava sempre por perto dos seus novos amigos. Acompanhava-os para todo o lado, inclusive para a pesca do caranguejo, actividade que dava tanto prazer ao cão como aos donos.

Naquele domingo soalheiro de Agosto, não se sabe por que motivo, talvez se tenha distraído com um rabo feminino de cauda, o Belenenses desapareceu. Procuraram-no por toda a parte, desde a tarde até ao anoitecer, e nada. Nem um sinal do amigão de quatro patas. É claro que o desaparecimento do animal foi dado como uma tragédia para os quatro miúdos, cuja altura do mais velho não ultrapassava o balcão da tasca, onde o pai também foi afogar o desgosto em álcool nessa mesma noite. Os miúdos passaram os dias a chorar, e se por acaso algum cão do bairro se aproximasse de casa ou ouvissem latir ao longe, acorriam à porta gritando: “Belenenses! Belenenses!” E nada, claro, era sempre outro canídeo que por ali andava a cirandar.

Ao fim de sete dias do desaparecimento do Belenenses, quando já todos tinham começado a conformar-se com a perda e as lágrimas pararam de correr para dar lugar aos risos de brincadeira na rua – aquela bênção do esquecimento que só as crianças possuem –, vindo sabe-se lá por que caminho que só o Deus dos cães saberá dizer, o Belenenses pôs-se a arranhar a porta de casa. Estava o homem sozinho, ébrio como sempre, e ouvindo aquele som pensou que, uma vez mais, já teria bebido mais do que devia. Levantou-se a custo do sofá para ir abrir a porta. Diante de si, o Belenenses com meio palmo da língua de fora, certamente sedento e esfaimado após sete dias de ter andado a monte. “Como é que o raio do cão encontrou o caminho de volta?”

Dos caranguejos até ao bairro do Chegadinho são à vontade 20 quilómetros. No dia em que se perdeu, tinham ido de carro e voltado na mesma viatura. Não havia maneira do bicho ter registado o percurso com a visão ou com o olfacto, porém a verdade é que ali estava. Foi então que o homem eufórico, ciente de estar diante da criatura mais inteligente e fiel que alguma vez conhecera, com a alegria própria e exacerbada por se ter atestado em tinto, pensou: “O bom cão a casa torna.”

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