Políticas de vacinação: um campo de exclusão para pessoas trans

Não somos situações concretas, não somos casos raros. Somos milhares de pessoas excluídas de normas de saúde pública da DGS. A inclusão explícita de pessoas trans e não-binárias nas normas clínicas onde o género e sexo são factores de relevância é essencial para a nossa segurança.

Foto
Ammar Awad/Reuters

Ultimamente, preocupações pertinentes relativas à administração da vacina Janssen em pessoas trans e não-binárias têm sido levantadas. Preocupações que o recente comunicado do Projecto Anémona explicita agilmente

A vacina Janssen, por ter apresentado mais fenómenos trombóticos com trombocitopenia, é desaconselhada a mulheres cisgénero jovens, já que o estrogénio é uma hormona associada ao aumento do risco trombótico. 

Desta forma, tanto mulheres trans que fazem reposição hormonal com estrogénio, como homens trans, pela exposição do corpo a estrogénio (mesmo que fazendo reposição hormonal com testosterona), expressam receio relativamente ao risco da administração desta vacina nos seus corpos, de um modo ou de outro, com mais estrogénio.

Damos de caras com um problema: a sistemática exclusão da comunidade trans na investigação científica e clínica, que nos deixa sem qualquer possibilidade de averiguar riscos e formular recomendações científicas que salvaguardem a saúde de pessoas trans. Estamos perante um processo de vacinação global e maciço, e mesmo nesta situação, a população trans não é incluída nos ensaios clínicos. Que corpos são dispensáveis? 

Nesta situação de indefinição, pessoas trans e não-binárias têm procurado a administração de outras vacinas existentes, e são múltiplos os relatos de discriminação nos centros de vacinação. Desde rejeições à administração da vacina, a profissionais de saúde pedirem aos utentes para “provarem” que são trans, tudo vai a jogo. Este é o resultado de normas e indicações da DGS que nos excluem, deixando espaço para o preconceito a arbitrariedade no atendimento de pessoas trans

Questionada sobre a vacinação de pessoas transgénero, Graça Freitas, directora-geral da Saúde, afirmou que estas dever-se-iam informar com “o seu médico assistente” sobre a vacina mais indicada. Ousado é assumir que esse médico assistente existe. Quem são? Os pouquíssimos especialistas das equipas que acompanham pessoas trans em Portugal, para com quem marcar consultas é um processo de espera de meses ou anos? Em Agosto? Ou serão os médicos de família que carecem de tanta informação sobre questões trans, que não têm normas ou indicações na sua assistência, que não sabem o que podem ou devem fazer para nos auxiliar? 

Para não falar do pressuposto absurdo que esta proposta apresenta: de que tem de ser o utente a responsabilizar-se pela procura da solução melhor para a sua saúde, e não o corpo de especialistas da DGS. Não é exactamente esta a função de uma direcção-geral da Saúde? 

Indicou ainda que “são situações concretas, (...) portanto, fazer uma norma genérica para situações que são particulares, não nos parece que seja a atitude mais adequada do ponto de vista da segurança”. 

Não somos situações concretas, não somos casos raros. Somos milhares de pessoas excluídas de normas de saúde pública da DGS. Somos as pessoas deixadas na zona cinzenta, aquela que abre portas a sermos discriminadas nos centros de vacinação. A inclusão explícita de pessoas trans e não-binárias nas normas clínicas onde o género e sexo são factores de relevância é essencial para a nossa segurança. 

O que não parece ser “a atitude mais adequada do ponto de vista da segurança” é fechar os olhos à necessidade de criar normas que contemplem as circunstâncias médicas de milhares de utentes trans, protegendo-se atrás de uma narrativa de que somos ‘situações particulares’, e não uma população com direito à protecção na saúde. A preocupação é com a segurança de quem? 

Sugerir correcção
Ler 2 comentários