As diversas capitais de Cabo Delgado…

Além do teatro de operações, militarmente falando, Cabo Delgado foi também um enorme palco de mais dois teatros, talvez os mais sangrentos: o teatro do silêncio e o do assassino da informação.

Além do teatro de operações, militarmente falando, Cabo Delgado foi também um enorme palco de mais dois teatros, talvez os mais sangrentos: o teatro do silêncio e o do assassino da informação. O teatro do silêncio era encenado, a partir de Maputo, por mestres de artes cénicas de alto nível profissional. A cena principal desse teatro consistia em encarapuçar tudo que acontecia em Cabo Delgado com um enorme manto de silêncio. (Quem não viu militares transformando quartéis em campos de concentração para sentenciar jornalistas que ousavam aproximar-se desse manto sagrado?). A única coisa que se devia ouvir, nesse teatro, eram as armas blaterando e passos de deslocados apedrejando-se sobre o chão da fuga.

Vimos os insurgentes preenchendo Cabo Delgado, como um cancro percorrendo as veias, mas os encenadores do silêncio é que ditavam cada gesto. Aos poucos, todos vimos, o cabo de Cabo Delgado desligando-se da ficha nacional.

E depois as cortinas do palco do silêncio fecharam-se, as luzes de sangue foram apagadas e sem perdermos tempo estreámos uma nova peça: o assassino da informação. Houve muitos teatros no teatro de operações de Cabo Delgado. Nesse novo teatro, a informação do que se passava em Cabo Delgado era guardada nos gabinetes dos nobres encenadores e lacrada com o selo de sigilo militar. Claro que os correios, em Moçambique, fecharam, mas nessa nova peça os selos foram importantes. Os jovens militares das nossas forças armadas eram encurralados, nas matas e, por vezes, punham-se a disparar gritos pelas bocas por falta de munições, nos quartéis a logística para os militares terminava nas mãos dos chefes e tudo era bem refinado para que a nova peça tivesse qualidade e aplausos no fim.

Às escondidas, alguns mercenários russos poisaram em Cabo Delgado, seguiram as pegadas dos insurgentes e o teatro do assassino da informação continuou. Nesse período tivemos, sempre, de recorrer a jornais russos para saber o que se passava em Cabo Delgado, tivemos de sair da sala desse grande teatro e correr atrás dos actores que estavam em cena. Os encenadores de Maputo continuavam com o seu belo trabalho de assassinar a informação. E, de quando em quando, para não abandonarmos a sala desse teatro, eram-nos entulhados os ouvidos com “a instabilidade protagonizada pelos terroristas em Cabo Delgado está controlada”.

Não nos esquecemos que, também, por um tempo, ficámos a saber sobre a carnificina de Cabo Delgado através dos periódicos sul-africanos. O grupo militar privado sul-africano – Dyck Advisory Group (DAG) – sobrevoava Cabo Delgado e nós, espectadores nacionais desse teatro, tínhamos de sobrevoar, como pássaros embebedados de vento, os jornais sul-africanos e saber o que se passava em Cabo Delgado. Íamos aos jornais sul-africanos, deparávamo-nos nas capas com notícias de moçambicanos esfaqueados em Pretória, mas engolíamos e procurávamos saber onde os insurgentes tinham atacado e a quantos moçambicanos tinham sido afastados as cabeças dos pescoços com lâminas de catanas.

O teatro do assassino da informação continuou. E do nada já éramos capa de todos os noticiários do mundo, os rodapés das televisões do mundo inteiro escorriam letras sobre o nosso país ao ritmo do sangue que vertia em Cabo Delgado. E quem não se lembra de que quase fomos laureados em Hollywood pela curta-metragem da mulher nua que foi espancada e coberta a nudez com um vestido de cápsulas de balas? Trata-se de uma micro-cena da peça do assassino da informação que nunca chegámos a compreender.

Claro que fomos obrigados a estudar o alfabeto francês e a compreender o francês, pois a petrolífera francesa Total fazia redacções, em Paris, sobre o dia-a-dia de Cabo Delgado. Foi a partir de Paris que soubemos que a Total já não tinha mais poços de paciência para esperar pelo sossego e para sugar os poços de gás em Cabo Delgado. Foi a Total que falou em force majeure e nisso, como autênticas moscas, poisámos as patas da nossa atenção e soubemos, uma vez mais, o que se passava em Cabo Delgado.

O teatro do assassino da informação, em Cabo Delgado, continuou; as nossas forças avançavam e recuavam, abatiam e eram abatidas, os fuzilados pelos insurgentes eram arrastados para trás da cortina porque a cena não podia parar. Lutava-se em Cabo Delgado e os efeitos de iluminação e som do nosso teatro do assassino da informação continuavam.

Quando chegaram oficiais ruandeses a Cabo Delgado, fomos informados e por isso tivemos de mudar de capital: instalámos a nossa atenção na cidade de Kigali. Aliás, primeiro foram os jornais de Kigali que nos avisaram sobre a presença dos seus oficiais em Cabo Delgado. A nova capital de Cabo Delgado virou a cidade de Kigali. Mil militares e polícias do Ruanda empurrados pelo discurso oficial de “baseado nas boas relações bilaterais” desembarcaram em Cabo Delgado e festejámos o apoio, com cuidado, pois o teatro ainda não tinha terminado. As nossas forças, com o apoio do “país amigo”, começaram a varrer Cabo Delgado e cada acção acompanhámos a partir de Kigali, pois os encenadores de Maputo continuam a aperfeiçoar a peça do assassino da informação. Quanto teremos de pagar ao governo do Ruanda por usarmos Kigali como a nova capital de Cabo Delgado?

E agora entra no teatro das operações, em Cabo Delgado, a força conjunta da SADC – Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, África do Sul, Botswana, Angola, Lesotho e Tanzânia. Qual será a nova capital de Cabo Delgado? Será que Cabo Delgado vai, uma vez mais, ter capitais nesses países?

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