O ouro de Rosa Mota vale mais que o ouro de Pichardo?

Pichardo foi formado em Cuba e medalhado em Campeonatos do Mundo pelo seu país. Desde que chegou a Portugal, a sua formação continuou no clube que o contratou, orientada pelo seu treinador cubano. Dizem alguns que a medalha é cubana porque é resultado da formação que Cuba lhe proporcionou. Disparate.

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Reuters/DYLAN MARTINEZ

Não tenho dúvida de que se fizessem esta pergunta aos portugueses a grande maioria responderia com o coração e a resposta seria “sim”. Mas quero cingir-me ao mérito desportivo dos atletas, deixando de lado empatias de personalidade e ideologia que têm inquinado a polémica em redor da medalha de Pedro Pichardo. Alguns dos argumentos que têm vindo a terreno para desconsiderar a vitória de Pichardo por Portugal prendem-se com a concessão da nacionalidade portuguesa em tempo recorde, considerando-a um privilégio que não está ao alcance de todos, com a sua representação abusiva pela seleção olímpica do país de acolhimento, e com a formação do atleta num país estrangeiro, o que lhe retira o direito moral de reivindicar a medalha como portuguesa.

A Lei da Nacionalidade, Lei 37/81 permite, no artigo 6, ponto 6, que estrangeiros possam adquirir a nacionalidade sem ter de esperar pelos cinco anos de residência em Portugal. Foi este artigo que permitiu a Obikwelu, Pichardo e outros terem conseguido a nacionalidade portuguesa tão rapidamente: “O Governo pode conceder a naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1, aos (…) estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional.” É um direito que está contemplado na Lei, não é um favor.

Há quem ache que a bandeira portuguesa não assenta bem num atleta naturalizado. Os que assim pensam recordam-me as declarações depreciativas e xenófobas de Jean-Marie Le Pen em 1996 sobre os jogadores franceses da seleção que ele considerava de segunda divisão, o ganês Desailly, o luso-francês Martins, os tunisinos Lamouchi e Madar, o congolês Loko, o argelino Zidane, e o arménio Djorkaeff. Porventura sinais da globalização, o facto é que atletas das mais diversas modalidades que abandonam os seus países de origem são contratados por clubes e os que demonstrarem capacidade acabam por representar as seleções depois de naturalizados. A nossa seleção de futebol tem um jogador naturalizado e já teve treinadores estrangeiros. E em que é que esta situação difere da dos nossos emigrantes que depois de adquirirem a nacionalidade dos países que os acolheram participam na respetiva vida política como autarcas ou senadores?

Pichardo foi formado em Cuba e medalhado em Campeonatos do Mundo pelo seu país. Desde que chegou a Portugal, a sua formação continuou no clube que o contratou, orientada pelo seu treinador cubano. Dizem alguns que a medalha é cubana porque é resultado da formação que Cuba lhe proporcionou. Disparate. Em primeiro lugar, a medalha é sua, a modalidade em questão é individual e não coletiva. O mérito é antes de mais seu, mas há naturalmente uma sinergia de contribuições: formação proporcionada pelo Estado cubano, pelo clube que o contratou, pelo Estado português, e excelência do treinador. A formação que Cuba lhe proporcionou foi um investimento do Estado cubano, mas não obriga o atleta a ficar amarrado ao formador: o formando tem todo o direito e liberdade de fazer a sua opção de vida desportiva (ou outra) e de emigrar.

Por exemplo, os enfermeiros portugueses licenciados e mestres pelos nossos politécnicos que emigraram para o Reino Unido foram exercer as competências que adquiriram por via do investimento do Estado português na sua formação, mas o retorno do investimento beneficiou o país de acolhimento. Portugal só tem de ficar orgulhoso de ter formado bons profissionais, mas ao mesmo tempo lamentar não lhes ter proporcionado melhores condições de trabalho.

Pichardo é um profissional de excelência, que emigrou porque entendeu que a glorificação patriótica que o Estado cubano faz do desempenho dos seus atletas não o vincula à permanência em Cuba. Cuba é uma potência desportiva que obteve desde a Revolução 220 medalhas olímpicas, a maioria no boxe e atletismo, o que traduz naturalmente um notável investimento no desporto escolar. A emigração de alguns dos seus atletas e treinadores deve ser encarada como um risco associado a qualquer investimento e não como uma traição à Pátria.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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