Escrever vozes

E o desafio é escrever sem ignorar as dificuldades de quem as ouve e sem as reduzir a sintoma de doença mental. Mas abrir espaços de expressão para as vozes e as pessoas ouvidoras. A dificuldade é encontrar as vozes e os termos em mim que quem ouve vozes possa reconhecer como sendo seus.

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É difícil escrever sobre um texto que ainda não tem forma. Há um ponto de partida, alguma informação, uma consciência vaga do desafio pela frente e pouco mais. Quando fui convidado para o grupo de dramaturgia do Ouvir Vozes, eu sabia que era um tema sensível. Sabia que íamos escrever a “várias vozes” para espelhar a experiência de quem ouve vozes que outras pessoas não ouvem. Sabia que o projecto tinha como principais objectivos sensibilizar e desmistificar o fenómeno, e sabia que com muitos anos de experiência neste tipo de intersecção a Marionet era a companhia certa para o projecto. Fiquei a saber que o fenómeno é mais comum do que se pensa e que há muitas pessoas ouvidoras de vozes que não só não têm dificuldade em lidar com as próprias vozes, mas que as entendem como sendo positivas e enriquecedoras. E estava a começar a descobrir que para quem as ouve é muitas vezes a possibilidade de fazer sentido da própria experiência que é continuamente posta em causa, que as vozes de quem ouve outras vozes têm sido frequentemente apropriadas, esvaziadas de significado, instrumentalizadas por interesses alheios. 

Escrever vozes é um exercício fundamental da dramaturgia. Procurar uma personagem é procurar a voz dela. Mais do que o que é dito, encontrar espaço de expressão nas pequenas variações da forma como pode ser dito. Que vozes quero eu escrever, como é que elas se movimentam, em que circunstâncias estão, e que vozes é que elas ouvem? Começo por ir procurar referências. Na Ilíada, na Odisseia, na tragédia clássica, ouvem-se os deuses e os mortos. Orestes e as Erínias; Cassandra; Tirésias. Na tradição bíblica, Moisés ouve a voz na sarça ardente, Salomão invoca e conversa com anjos e demónios; a Anunciação; S. João Baptista. Em Shakespeare, Hamlet fala com o fantasma do pai; em Marlowe, Fausto ouve vozes. Para além de Mephistopheles, das visões, do “Homo Fuge” escrito no braço, Fausto ouve vozes e fala com e sobre elas.   

Marius Romme, psiquiatra holandês e fundador do Movimento Ouvir Vozes, nota que o ouvir de vozes é uma variação comum nos seres humanos, não necessariamente patológica em si, e que o que é necessário é um processo de emancipação das vozes, uma compreensão por parte de quem as ouve de que elas são reais, que fazem parte deles, que são uma experiência pessoal que não devia estar sujeita a qualquer tipo de perseguição e que não é lícito querer transformá-los em não-ouvidores de vozes (e aqui Romme estabelece um interessante paralelo com tentativas de curar a homossexualidade). 

A metodologia proposta pela Marionet, que parte de entrevistas feitas a pessoas ouvidoras, assume assim particular importância. O trabalho de escrita e de criação é enraizado na experiência e na voz de quem melhor conhece a experiência tão particular que é o ouvir de vozes. À medida que me aproximo dos relatos pessoais, apercebo-me que estes assentam com muita frequência na experiência de ouvir vozes como sofrimento, como obstáculo ao bom funcionamento social, profissional, pessoal de quem as ouve, marcada pela ansiedade, pelo medo, e pelo estigma da doença mental. Pela privação da capacidade de exprimir a sua própria posição ou de fazer sentido de si próprio. É uma autoridade exterior, quem determina o valor e o significado das vozes. A voz de quem ouve vozes é quase sempre silenciada.  

E o desafio é escrever sem ignorar as dificuldades de quem as ouve e sem as reduzir a sintoma de doença mental. Mas abrir espaços de expressão para as vozes e as pessoas ouvidoras. A dificuldade é encontrar as vozes e os termos em mim que quem ouve vozes possa reconhecer como sendo seus. 

As entrevistas ajudam com isso. Ajudam a perceber na experiência do António o que desconhecia das vozes do Fausto, nas vozes da Ana o que não sabia sobre a experiência da Cassandra. E posso reinventar a voz e as vozes da Ana e do António, do Fausto e da Cassandra. Deslocá-las para um espaço em que todas elas têm realidade própria (a Ana e o António são fictícios). 

Ao mesmo tempo, tenho ao dispor toda uma variedade de vozes, das que parecem ter origem em traumas às que não têm motivo aparente, das que insultam ou dão ordens às que elogiam ou aconselham, das vozes de anjos, demónios ou extraterrestres às vozes de familiares, amigos ou desconhecidos, das vozes de quem “só quer que as vozes parem” às de quem as procura. E a equipa de dramaturgia está a trabalhar com total liberdade e independência em termos de processo criativo, sendo que cada um terá diferentes pontos de vista e diferentes vozes a propor aos corpos dos actores, ao espaço de representação, e se tudo correr bem, ao público. 

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