C’era una Volta in Portogallo: conhecer Portugal através da Volta em bicicleta

Documentário de dois italianos a viver em Portugal mostra a relação de simbiose entre a Volta a Portugal e os territórios mais desconhecidos que a prova coloca no mapa em cada edição. “A Volta não é só uma edição desportiva de ciclismo, mas sim um acontecimento cultural”, dizem. Ainda não há data de estreia.

“A Volta a Portugal não como evento ciclístico em si, mas como parte de Portugal durante a Volta.” A frase que (quase) inicia o vídeo de abertura deste artigo é o ponto de partida para o documentário C’era una Volta in Portugallo, uma viagem dos italianos Daniele Coltrinari e Luca Onesti ao Portugal em celebração da prova-rainha do ciclismo português (que tem mais uma edição a arrancar esta quarta-feira, 4 de Agosto).

O documentário, que está a ser produzido e deve ser apresentado até ao final deste ano, é inspirado num livro com o mesmo título, escrito pelos dois amigos. Esta publicação conta as peripécias passadas nas várias edições da Volta que acompanham desde 2013, das aventuras com vários adeptos que encontram pelo caminho, passando por boleias e caminhadas, tudo para “perseguir uma paixão” como é a Volta a Portugal.

Já o projecto em vídeo tem maioritariamente imagens que remontam à 79.ª edição da Volta a Portugal, em 2017, que Daniele e Luca acompanharam juntamente com outros dois amigos: Massimiliano Astolfi, com quem até já tinham feito outro documentário sobre os italianos a viver em Lisboa, e Maurizio Archilei, o dono da caravana que lhes deu abrigo e garantiu uma cobertura total da prova, conta Daniele ao P3.

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Daniele Coltrinari, Luca Onesti, Massimiliano Astolfi e Maurizio Archilei, os quatro amigos que acompanharam de caravana a 79.ª edição da Volta a Portugal, em 2017 C'era una Volta in Portogallo/ Facebook

“Foi fantástico. Ajudou muito. Geralmente, eu e o Luca vamos à chegada em todas as edições, não vamos à partida da etapa. Com a caravana era possível ir à partida e à chegada”, diz.

O objectivo do projecto passa pela divulgação do ciclismo e, em particular, da prova portuguesa, ao mesmo tempo que dá a conhecer recantos de Portugal com menor reconhecimento ou visibilidade. E as duas metas – a desportiva e a cultural – andam de mãos dadas, não fosse essa a verdadeira essência do evento que Daniele e Luca querem retratar.

“A Volta não é só uma edição desportiva de ciclismo, mas sim um acontecimento cultural”, vinca Daniele. “É isso que queremos mostrar. Dar a conhecer a competição aos apaixonados do ciclismo italianos, estrangeiros; descobrir outros sítios como Bragança, Viana do Castelo, até o Porto, apesar de ser mais conhecido; contar a nossa história na caravana, poder viajar desta maneira; e tentar fazer perceber ao público estas fortes emoções da Volta.”

Para isto, o documentário conta com testemunhos de vários intervenientes, desde ciclistas a jornalistas com largos anos de experiência a cobrir a “grandíssima”. Inclui também várias intervenções do director da Volta a Portugal, Joaquim Gomes.

Amor comum pelo ciclismo e por Portugal

O mote do C’era una Volta in Portugallo – que significa “Era Uma Vez em Portugal” e joga com a expressão “Era uma vez” em italiano (“C’era una volta”) –, proferido pelo próprio Daniele Coltrinari no início do vídeo de apresentação, lança o conceito de uma relação de simbiose entre a caravana das competições de bicicleta e o público que com ela vibra nas bermas da estrada. A ideia das grandes provas de ciclismo como acontecimentos socioculturais que vão muito para além da mera corrida. Em Portugal, esse sentimento é sentido na sua plenitude durante duas semanas do Verão, com a “grandíssima”.

Para quem vem de fora e gosta de ciclismo, como é o caso de Daniele e Luca, é uma questão de tempo até que essa ligação se faça sentir ao chegar a Portugal. O primeiro contacto dos dois italianos com a paisagem ciclística portuguesa aconteceu em 2013, mas a relação com o país começou uns anos antes. Daniele conheceu primeiro Lisboa, onde viveu meio ano em 2008 a propósito de um estágio no âmbito do programa Erasmus Placement.

“Os seis meses foram rápidos, não deram para nada”, conta ao P3 o jornalista freelancer. “Nada” acaba por não ser exactamente correcto, porque foi algures nesses seis meses que conheceu Luca Onesti, que se dedica sobretudo à edição de imagem e fotografia e vivia então em Lisboa, também no âmbito do tal programa de Erasmus. O período na capital também plantou uma semente que resultou em visitas a Portugal em 2010 e 2012, mas ainda sem a Volta.

“Em 2013, vim mais uma vez para Lisboa e a ideia era ficar três meses para uma reportagem, juntamente com o Luca”, conta Daniele. Os dois encontraram casa juntos, e aqui “a história fica comprida”, diz-nos o italiano. Os três meses transformaram-se em quatro anos, com os dois a viverem em Lisboa até 2017. “Encontrei trabalho e fui ficando mais tempo”, justifica Daniele, entre risos. 

Uma aventura pelo território português

Mas virando de novo para o ciclismo. Daniele e Luca descobriram que partilhavam a paixão pela modalidade, e ao procurarem por provas em Portugal “do género do Giro d’Italia” encontraram a Volta. Uma pesquisa levou a outra e, em Maio de 2013, estavam a entrevistar Delmino Pereira, o presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo (FPC). Assim ficaram a saber que a maior parte do percurso actual da Volta passa pelo Norte do país, uma região que nenhum havia visitado. Era uma questão de juntar o útil ao agradável.

“Tentamos ter acreditações através de um jornal italiano para acompanhar a Volta e assim descobrir o Norte de Portugal, ao mesmo tempo”, conta Daniele. Mas o processo não estava fácil: sem resposta aos emails dos pedidos de acreditação, apareceram em Junho no escritório da organização, no Marquês de Pombal, para pedir pessoalmente as credenciais.

Lá foram tentando explicar o que pretendiam, até que “um senhor mais afastado” se apercebe do sotaque italiano dos jornalistas – ou pelo menos de dois indivíduos que pediam acreditações. “Sabe quem era? Era o Joaquim Gomes, o actual director da Volta.” E assim conseguiram acompanhar a prova pela primeira vez.

“Foi um ano em que ainda não tínhamos conhecido o Norte, sabíamos pouco da história do ciclismo português – Joaquim Agostinho e pouco mais. Sem conhecer a história, foi um ano incrível para descobrir as equipas, os corredores, as cidades”, conta Daniele. Ao mesmo tempo, a cobertura foi “uma loucura”, viajando quase sem dinheiro, a pedir boleias e a “apanhar comboios, arranjar bicicletas, autocarros”.

Além disso, Daniele confidencia ao P3 que a prova portuguesa permitiu aos dois amigos fazer as pazes com a modalidade, quase dez anos depois da trágica morte de Il Pirata” Marco Pantani. “Eu e o Luca deixámos de seguir o ciclismo em Itália depois da morte do Pantani. Em Itália foi um choque para muitos apaixonados do ciclismo em Itália. Para mim mais, para ele menos. Acompanhar uma competição como a Volta a Portugal para descobrir o ciclismo português foi uma maneira de recomeçar o ciclismo numa dimensão diferente”, admite.

Das estradas para as páginas até aos ecrãs

A viagem por Portugal à boleia da Volta tornou-se ritual anual para Daniele e Luca, e acabaram por decidir passar para livro as memórias que fizeram ao longo dos anos de aventura pelas estradas portuguesas. As experiências vividas nas várias terras fazem a história do livro, intercalando turismo, tradições, costumes e festas populares com histórias do ciclismo português. Um cruzamento de vivências desportivas, culturais e turísticas que também quiseram levar para o documentário, apesar de este se focar mais no âmbito competitivo e histórico da prova.

“Neste documentário a Volta passa-se no interior, a maior parte no Norte do país. Ao mesmo tempo, tem imagens nossas, que vamos viajar por lá. É engraçado. É um bocadinho diferente do livro porque é mais concentrado numa edição, a de 2017. Mas acho que, para um italiano, um francês, um espanhol e até um português não importa: o objectivo é explicar o que é a Volta a Portugal”, explica Daniele.

A pandemia veio atrasar os planos de lançamento do filme e até dificultar a vinda de Daniele para a edição especial de 2020, mas o projecto já voltou a entrar nos eixos este ano e deve ser apresentado em breve, apesar de ainda não haver datas previstas para o efeito.

Daniele e Luca já não vivem juntos, mas continuam a reunir-se todos os anos para acompanhar a prova portuguesa. Luca Onesti está em Portugal, agora a fazer um doutoramento na Universidade de Lisboa, mas Daniele voltou a Itália em 2017 e, desde então, só pisa solo português para passar uns dias em Lisboa e seguir depois para a Volta.

“Estamos numa fase diferente da vida. Fico bem em Itália, tenho uma namorada. Vivo em Bracciano, menos de 40 quilómetros a norte de Roma. Mas não excluo voltar a viver em Lisboa caso tenha condições de trabalho que o possam justificar”, admite Daniele, que realça a beleza do resto do país, ainda desconhecida para muitos compatriotas.

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Daniele Coltrinari na Serra de Larouco, em Montalegre, na edição da Volta de 2014 Luca Onesti

“Muitos italianos são apaixonados por Portugal, principalmente por Lisboa, mas não sabem a beleza do resto do país. A Volta ajudou a conhecê-lo.” Esperam agora que o documentário faça o mesmo. “Começámos a acompanhar a Volta a Portugal por duas razões: porque gostamos do ciclismo, somos apaixonados em descobrir o ciclismo em Portugal e, ao mesmo tempo, era uma maneira de conhecer o resto do país. E, agora que conheço, posso dizer que gosto muito.”

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