Entre a abjecção e a náusea – quando até as vítimas se tornam cúmplices da farsa

A chaga do 27 de Maio com o seu estendal de crimes bárbaros não se cura, já o afirmei em certa ocasião e volto a dizê-lo, com processos de gestão de conflitos conduzidos cima para baixo, como lamentavelmente se verificou em Angola.

Nós sabemos quem são eles e com quem estamos a lidar. Falo dos apparatchiks  que nos enganam todos os dias com as suas técnicas de manipulação da informação no intuito de desfocar a realidade e oferecer das coisas uma visão idílica e fantástica. Embriagados pelos licores do poder e refugiados nas suas tocas, eles usam o ceptro da sua majestade institucional para impor ao país um infindável repertório de imoralidades e estratégias fraudulentas destinadas a justificar as políticas de violação sistemática dos direitos humanos que fazem de Angola hoje no mundo um dos maiores paraísos da impunidade.

Em vez de observarem as normas da jurisprudência internacional relativa a crimes e violações do Estado contra a integridade física e moral das pessoas, o MPLA e as suas instituições inverteram os ponteiros dos seus relógios. Em nome da melhoria da convivência nacional entre os seus cidadãos, inventam fórmulas caseiras e dúbias de reparação das injustiças e calam com simulacros e subterfúgios de linguagem os clamores de quem exige explicações. De quem, com plena legitimidade jurídica e moral, se pergunta por que razão tantos homens e mulheres de boa índole (incluindo adolescentes), que nenhum mal fizeram aos deuses, como diria Fernando Pessoa num dos seus poemas[1], foram alvo de operações repressivas no reinado ditatorial de Agostinho Neto e, para mais, torturados e mortos sem nenhum motivo. Como justificar tanta fúria e maldade em homens que fizeram a guerra de libertação e se permitiram, no fim de contas, levantar as armas contra o seu próprio povo?

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Audição amputada pelas tiranias do poder estatal e religioso, detalhe da obra O Jardim das Delícias Terrenas, por Hieronymus Bosch, 1504 DR

Até hoje, a exigência de se saber a verdade permanece sem resposta e os segredos de tantos crimes trancados a sete chaves nos templos do regime. Não obstante o silenciamento, o general João Lourenço recentemente fez rufar tambores triunfantes e ofereceu ao país uma poção mágica de perdão pela tragédia do 27 de Maio, dizendo que todos, por dever cívico, tinham de se perdoar uns aos outros. Vítimas e algozes. E, sem mais satisfações, calou a identidade dos criminosos e a responsabilidade de cada um naquela desgraça.

Com este gesto e a promessa de se emitirem certidões de óbito e se devolverem às famílias os restos das vítimas mortais, é possível que o general se tenha sentido uma espécie de deus justiceiro e o seu ego inflado às alturas da glória. Pelo tom de ufania que escorre do seu discurso, Angola, na sua opinião, emergiu dos destroços da sua guerra interna e encetou o caminho da reconciliação dos seus filhos. Especialmente entre a família MPLA, a mais devastada pelo período negro do 27 de Maio.

Puro engano. Comprada à custa de muita propaganda (que a burocracia do Partido aplaudiu), a glória pessoal do mandatário não passa de uma glória falsa. Uma glória conquistada em cima do infortúnio e da humilhação de quem sofreu perseguições e torturas de toda a espécie às mãos de quadrilhas mortíferas do MPLA e se recusa, por isso mesmo, a comungar da perfídia do perdão presidencial e de outras medidas falsamente reparatórias. Ao esconderem a identidade dos verdugos e dos assassinos atrás dos biombos do poder político, nomeadamente os nomes dos artífices da tragédia, o presidente João Lourenço e os seus pares do Partido e do Estado voltaram a cingir a máscara da hipocrisia e a tentar deformar a realidade. Não é com pedidos insidiosos de perdão (em que se oculta o que deveria ser exposto) que se viram páginas medonhas da história contemporânea de Angola e se cicatrizam os horizontes do futuro.

A chaga do 27 de Maio com o seu estendal de crimes bárbaros não se cura, já o afirmei em certa ocasião e volto a dizê-lo, com processos de gestão de conflitos conduzidos cima para baixo, como lamentavelmente se verificou, mas antes por meio de um amplo exercício colectivo de apuramento de responsabilidades, onde a posição da sociedade civil deveria ter sido marcante. Só desta maneira se alcançaria o desejado clímax de entendimento e compreensão entre as partes. Isto é, entre as vítimas e o Estado. Fora deste quadro o processo promovido pelo regime não passou de uma encenação, de uma comédia urdida desde o início para atender os interesses de clientelas militares, lastros decisivos do regime do MPLA e principais braços responsáveis pelas chacinas do 27 de Maio.

Ficou patente no decorrer dos trabalhos da fantasiosa Comissão de Reconciliação criada pelo governo a cedência de vantagens do poder político ao bloco castrense e a posição dominante dos militares naquele órgão. O estatuto por eles assumido na Comissão foi assinalável, igualou-se ao de uma facção político-partidária. Não fosse assim e não se assistiria ao martelar repetido de argumentos cavilosos com que o regime tem pretendido desde então exculpar-se dos seus crimes de lesa humanidade e sepultá-los nas areias do tempo sob a desculpa falaz de que mais vale esquecer e melhorar o estado das coisas no presente do que reavivar as feridas do passado. Em causa estão, como desde logo se pôde intuir, os crimes dos fardados e dos seus principais mandantes que o poder político, entretanto, por tácticas recorrentes de silêncio, se esmera em conservar nas sombras do esquecimento.

Inequivocamente estamos diante de situações graves e escandalosas, tamanha a insolência dos senhores do MPLA que não respeitam nada com as suas farsas e tão-pouco as vidas humanas que eles sacrificaram. Tão grande é o seu desprezo pelas normas fundamentais que regem as Convenções internacionais sobre desaparecidos forçados, que se esquecem do mal que continuam a infligir aos desaparecidos ao impor-lhes uma morte sem fim. As leis no mundo civilizado estabelecem que todo e qualquer desaparecimento não revelado é um assassínio continuado contra as vítimas e contra os seus parentes, e tais crimes imprescritíveis. Valendo igualmente a doutrina de que, enquanto não se apurar o paradeiro do defunto e a circunstância em que ocorreu a sua morte, ele sempre estará presente entre nós na figura de um fantasma vivo a reclamar por justiça.

Como reagem os círculos mais ilustrados da intelligentsia nativa a estas graves infracções do Estado e às suas falácias jurídicas? Por ironia da história nenhuma palavra brota da pena e dos peitos dessa classe pensante. Sequer uma palavra de indignação. O que não é de estranhar se se levar em conta a proverbial mudez e acomodamento de tais pessoas, típico da sua indiferença para com os rumos trágicos do país. Para quem se calou diante do morticínio humano e das operações de terror no Cafunfo, Lunda-Norte, pouco ou nada há a esperar da maioria dessa casta.

Parece que a razão e a repulsa contra as injustiças, as violências e outras vilanias e abusos de poder deixaram de existir na cabeça dos chamados bem-pensantes. Dir-se-ia que todos os fenómenos de aviltação social e política que se desenrolam debaixo dos seus narizes já não lhes tocam a alma. Se assimilaram ou não todos os horrores e infâmias do regime, a ponto de já não serem capazes de desdobrar as pregas por debaixo das quais se ocultam as grandes torpezas do MPLA, é um enigma ainda por sondar. Seja como for, dificilmente se distingue nessas pessoas uma ossatura de grandeza ética e moral, excepto um amontoado de ambiguidades para lá dos quais se divisam indivíduos apenas submissos e cúmplices do Partido dominante com os seus poderosos tentáculos de corrupção material e mental.

Salta, pois, aos olhos a mediocridade e a ausência de carácter que inunda todos os espaços e instituições do país. Facto bem sintomático do estado abominável e degradante a que chegou a sociedade angolana às mãos dos seus “faraós” (ou autocratas). Mumificou-se, para utilizar uma comparação razoável com a sociedade argelina pós-colonial descrita pelo escritor argelino Kamal Daoud[2].

Angola, com efeito, regista curiosas similitudes com o Estado magrebino que também empreendeu uma dolorosa luta de libertação nacional, mas que acabou por se retalhar internamente como resultado de lutas pelo poder, distorção das leis e das instituições e pela corrupção desenfreada até se vergar às monstruosidades do reinado ditatorial do presidente Abdelaziz Bouteflika. No caso de Angola, a fragilidade de valores e a sua consequente desconstrução aviltou as instituições e as mentes e desfigurou o país, quase fazendo dele um grande intestino, como ocorreu na Argélia[3]. Terríveis experiências políticas desde 1975 causadas pela insanidade de pseudo-revolucionários que se investiram do poder indisfarçável de salvar o mundo ao sabor dos seus caprichos, tanto quanto a depredação e o saque das riquezas nacionais levados a cabo pela burocracia civil e militar do MPLA, culminaram naquilo que há muito se desenhava como fatal: Angola lançada nos esgotos da abjecção e detentora das piores marcas em todas as classificações internacionais sobre governabilidade e qualidade de vida das populações.

Não haja, pois, ingenuidade ou falsas ideias com respeito ao pedido de perdão do general João Lourenço e ao carácter enganador que lhe está associado, quando é sabido que no reino do MPLA os dirigentes fazem o impossível para que não haja passado e não se pense nele. “A única verdade que impera desse passado [dizem os ideólogos do Partido], pertence a nós”. A eles, segundo o regurgitar das suas falas. Por isso, é ilusório pensar que possa haver algo de salutar e construtivo no pedido de perdão, salvo o facto de ser uma beberagem narcotizante destinada a adormecer a consciência das vítimas do 27 de Maio.

Entretanto, lado a lado com os intelectuais e a sua abdicação de princípios, temos agora um outro fenómeno, não menos singular, que causa espanto: a reacção de uma boa parte das vítimas do 27 de Maio que aclamou o gesto do general João Lourenço na crença de que o regime mais adiante irá romper a bolha de mentiras que criou em todos estes anos e revelar a identidade e a responsabilidade dos assassinos. Quase não dá para acreditar que haja gente pronta a ser fiadora de tal fantasia, a não ser como figura de anedota, pela simples razão de que o MPLA já provou, de forma categórica, ser incapaz de fazer a revisão das falsificações que ensombram o seu passado histórico e remir-se dos crimes abomináveis que pontuam todo o seu trajecto de vida.

Se algo avulta no comportamento histórico dos mandarins do MPLA e do seu governo é a tendência patológica para a mentira. Desta maneira, não deixa de ser uma piada a atitude das vítimas ao acreditarem que João Lourenço é o homem capaz de arrancar “o vómito para sepultar o mito”, como diria a poetisa argentina Alejandra Pizarnik[4]. O mito neste caso não é outro senão Agostinho Neto, conforme o exaltam os seus idólatras. Sepultá-lo significaria proceder à sua dessacralização e responsabilizá-lo como o grande deus vingador que mandou matar velhos companheiros da guerrilha e milhares de civis inocentes.

Só no domínio da ficção é possível sustentar esta hipótese do sepultamento simbólico. Uma quimera que floresce no imaginário das vítimas e as faz iludir-se com o perdão, pois esquecem o que Neto representa para o MPLA. Ele é a alma redentora do Partido, seu alicerce mágico que paira acima do bem e do mal, nenhum tribunal de opinião pública o pode julgar. Ademais, para a militância do MPLA, como escrevi uma vez (“Angola na Sombra do Perpétuo Ditador”, Público, edição de 27 de Setembro de 2020), Neto personifica a figura tutelar do país e confunde-se com o próprio Estado.

Logo, como é possível falar em sepultar o mito? João Lourenço com certeza não cumprirá esta ingente tarefa que o obrigaria, antes de tudo, a desafiar os restantes deuses do seu Olimpo. Ele próprio, como se deduz, não está interessado em arcar com semelhante empreitada. Por formação ideológica e genética política, ele é um netista empedernido. Um herdeiro consumado do pensamento de Neto e do seu modelo autocrático de governação a quem reverencia com eloquentes litanias. Dúvidas houvesse sobre o cordão umbilical que o liga ao seu antigo grande líder, a contraprova dos últimos acontecimentos é convincente e remove qualquer incerteza: dois dias depois de emitir o perdão, João Lourenço ordenou por decreto que se iniciassem os actos preparatórios dos fastos magistrais que se irão celebrar em 2022 para homenagear a memória de Neto.

Blindar os crimes de Neto é assim para o regime de Luanda um meio decisivo para se alcançarem fins inconfessáveis. Em atenção à sua aura sagrada, Neto é tido por intocável, do mesmo modo que o são os demais hierarcas que compunham a sua Corte (Lúcio Lara, Iko Carreira e outros), verdadeiras “matrizes do inferno”, para usar uma expressão de Marcos Aguinis, escritor argentino[5], que exorbitaram da supremacia que detinham como autoridades do Estado e do Partido e agiram de má-fé, com propósitos delinquentes visando impor ao país a camisa-de-forças de uma ditadura sanguinária.

No que se refere aos militares, o entendimento do establishment é o mesmo: a necessidade de se preservar a imagem épica dos chamados libertadores da pátria. Falar dos seus crimes, das atrocidades contra civis e abrir-lhes processos de responsabilização, é em absoluto impensável para os senhores do MPLA e um melindre que eles trazem à flor da pele e se afadigam em dissimular. Nenhuma dessas selvajarias pode alguma vez ser divulgada, deve manter-se em absoluto segredo até que o tempo reduza tudo a cinzas.

À vista do que se expõe, importa sublinhar que nenhum arquivo sairá à luz para esclarecer os crimes do 27 de Maio e pôr a nu os seus mandantes e executores. Por consequência, não passa de uma mentira artificiosa o verniz de seriedade que João Lourenço emprestou ao seu pedido de perdão. Para ele e os seus iguais o gesto não configura nada de certo ou errado, é a lógica do MPLA e do seu governo. Até uma estátua de pedra, se tivesse vida, envergonhar-se-ia de tanto cinismo e da oferta de um brinde sangrento em nome da paz e da reconciliação. Só as vítimas do 27 de Maio parece não se envergonharem, convencidas de terem no general o protótipo de um democrata e de ele representar uma nova era de liberdade política e de justiça e de os criminosos um dia virem a fazer a sua mea culpa em público.

Na verdade, os devaneios voam alto, de tal maneira que já não surpreende o texto que corre por aí, da autoria de uma das vítimas, a questionar a responsabilidade do “pai da pátria” nas loucuras do 27 de Maio; e a brandir o argumento de que se não fossem os serviços de inteligência (a chamada DISA), uma corporação dirigida por um bando de malfeitores que abusaram da autoridade de Neto e desencadearam operações por conta própria, o país jamais teria mergulhado nas fossas da violência e no que de mais pavoroso alguma sociedade pode experimentar.

Inusitado este comportamento nas vítimas e o seu breviário revisionista, talvez original no mundo, de elas próprias arrancarem de Neto os espinhos da sua culpa, inocentando-o parcial ou totalmente. Seja como for, os ingénuos defensores de Neto, ao fazerem esta defesa, estão a derrubar a grandeza do antigo presidente e a reduzi-lo à condição de um deus menor, quase insignificante, falho de autoridade e, nessa medida, uma criatura inepta e sem pulso para controlar os seus homens, designadamente a polícia política de Estado.

É evidente que se trata de uma avaliação errónea. Neto era, sem dúvida, uma personalidade complexa, coberta de muitos defeitos, porém, um mau político que se impunha sobretudo pelo medo e por instintos doentios de vingança. Mas dirigente fraco nunca foi. Pelo contrário. A melhor definição para o caracterizar seria chamá-lo de príncipe de ferro na forma como governou Angola e o MPLA, sempre arrebatado por uma vesânia ditatorial. Pelo conhecimento que tenho da sua história como persona política e considerando o modo como geriu o imbróglio das rivalidades palacianas antes do 27 de Maio, estou à vontade para o apontar como o maior responsável pelas marchas de alucinação e pelos fogos de ódio que incendiaram o país depois daquela data. Ele foi indiscutivelmente o deus da carnificina, os seus rancores e perversidades políticas eternizar-se-ão por todos os tempos e as gerações futuras estudá-lo-ão com cuidado ao abrigo de militantismos ocos. Tentar agora eximi-lo de culpas, é realmente um facto extraordinário. Mais a mais por inspiração das vítimas.

Como entender a acção destas pessoas? Jan Zabrana, escritor checo, que viveu os horrores do regime estalinista soviético no seu país (de 1948 a 1989), a meu ver oferece a resposta mais aceitável: “Basta a um regime policial manter-se no poder por vinte anos para converter toda a gente em cúmplice. Até as suas vítimas”[6].

  1. Fernando Pessoa. “Segundo. O das Quinas”. In: Mensagem [edição Fernando Cabral Martins, edição original Assírio & Alvim], Lisboa, Editora Planeta D’Agostini, 2006, p. 16.
  2. Kamal Douad. Mes Indépendances. Chroniques 2010-2016, Alger, Éditions Barzakh, Actes Sud, 2017, p. 34, Avilissment Général, Mercredi 29 Septembre 2010), p. 266
  3. Idem, p. 366
  4. Alejandra Pizarnik. “Dédalus Joyce”. In: Poesía Completa (1955-1972), edición a cargo de Ana Beccíú, Barcelona, Lumen (Penguin Random House Grupo Editorial), 2016, p. 43.
  5. Marcos Aguinis. La Matriz del Infierno, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1997.
  6. Jan Zabrana. Toute Une Vie [edição fixada, anotada e apresenta par Patrik Ourednik, traduzida do checo por Marianne Cannavagio e Patrik Ourednik], Paris, Editions Allia, 2005, p. 32.
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