Das filhas: por Bruno Candé e três jacarandás em Lisboa

Quantos dos seis tiros atingiram Beatriz? E o quanto é que os tiros tiraram a Beatriz? Aos 44 anos de balas aprendi a somar.

Conheci-a em 2015, a propósito de uma reportagem publicada no Caderno P3 do Público sobre o Racismo em Português. Uma das entrevistadas era a minha amiga Katila Pinto de Andrade e, no querer da partilha, fui enviando e partilhando o pdf, sem sequer pensar que incorreria no crime de usurpação de conteúdos. Mais tarde fui avisada de que ultrapassava a linha vermelha do Público e senti o peso de um crime cometido nesta necessidade desenfreada de comunicar tudo a todos.

Também ali passava por cima de direitos, mas no passado Domingo os jornais eram todos meus, tinha-os comprado e somava-os no monte de coisas lidas, a reler ou que podem ser precisas ler novamente um dia. Esse dia foi 24, no passado sábado, um dia antes de fazer um ano da morte de Bruno Candé: um homem, um filho, um irmão, um pai, um tio, um amigo, um actor.

Voltei àquele dia parada em frente à televisão que interrompia o senso com as imagens de corpo e meio de um homem prostrado no chão.

Era um actor. Do Chapitô. Aluno do Bruno Schiappa durante mais de um ano nos Cursos de Expressão Dramática. Era família. Daqueles que subiam a colina, galgavam o castelo até ao grand chapiteau de onde Mademoiselle Teresa Ricou ia abrindo e fechando as cortinas e eu, de frente ao televisor, sem saber porque estava a luz acesa, como não havia cortinas, para que lado era o palco, como se sentava o público, quando é que começava o barulho das palmas?!

Reler jornais é amontoar memórias e ao ler aquela abertura da Joana Gorjão Henriques ilustrada pela fotografia de Diogo Ventura no papel dobrado da edição de 27 de Julho de 2020, nem eu sei bem porquê veio-me à memória outra abertura, a de um poema: “When day comes we ask ourselves, / where can we find light in this never-ending shade?”. Bruno Candé não viveu para ouvir Amanda Gordman declamar “The Hill We Climb”, pois talvez se tivesse lembrado daquelas noites de subidas; teria o seu xará Bruno Schiappa à sua espera em mais um fim-de-tarde em nada igual aos outros, com a direcção artística que só o professor de teatro sabe dar aos dias.

Continuei-me a enfartar leituras com anotações: “O que motivou o homicídio?, perguntou-lhe a PJ. Os insultos e o ‘confronto’ referiu.” O confronto. Parei na palavra. Cinco minutos ali naquela palavra que explica tanto do que é isto de ver no outro um outro e não um eu igual a mim. Talvez ele pudesse ser preto, talvez... Só que nunca poderia é confrontar.

Andei para a frente com as palavras, as informações, as anotações a baterem ao ritmo da notas numa pauta: “Preto, vai para a tua terra!”; “Volta para a sanzala!”; “Tens toda a família na sanzala e devias também lá estar”; “A puta da tua mãe está numa sanzala”; “Anda cá, que levas com a bengala, preto de merda!”; “Tenho lá armas em casa do Ultramar e vou-te matar”; “Eu lá violei a tua mãe”; “Preto do caralho. Vai para a tua terra”; “Quando vi o riso dele em tom de gozo perdi a cabeça”; “estava sentado”; “Já está”.

Sei que era africano. A raça africana conheço bem de longe”; “Estou na PJ por ter matado um preto”.

Fechei os jornais e lembrei-me dos tempos da Faculdade, quando conheci o António Tomás, no intervalo das aulas de Sociologia Política do Professor Braga da Cruz. Foi nesse ano que aprendi sobre o sonho de um teatro sem cor, um teatro que, em finais dos anos 90 do século passado, o Tomás começava a estruturar com um grupo de três actores negros: Ângelo Torres, Daniel Martino e Miguel Hurst. Talvez fossem mais, mas estes três eram os amigos dele, especialmente o Daniel e o Miguel. O Tomás, como lhe chamávamos em Lisboa no tempo roubado à biblioteca no piso 2 da Reitoria da universidade Católica de Lisboa, tinha sido Toy em Angola. Desertou. Às vezes falava-me da guerra. Mas pelo meio mostrava-me a face mais pulsante, era ele quem escrevia as peças que depois o elenco de actores interpretava. Já nessa altura trazia o Público numa mala a tiracolo onde guardava os textos que escrevia e, eventualmente, ali terá pousado o texto “Cabral”, uma das peças da sua autoria que foi exibida no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Lisboa. Mais tarde haveria de dar num livro biográfico, traduzido neste ano de 2021 para inglês. Estávamos na Primavera de 1999 e aquele era o primeiro projecto de um teatro em que peças eram construídas para serem interpretadas por homens e mulheres independentemente de qualquer pertença. No Museu do Pau Preto, assim se chamava o colectivo, o que se criava era a liberdade, não o lugar, pelo que se criava nunca poderia ter género, etnia, origem territorial, idade, opção sexual, crença religiosa ou orientação política. Ali, nada era racializado.

De volta ao hoje para perceber que se passaram tantos anos e que a colina por subir continua por subir, perdurando no tempo o horizonte das palavras a declamar: “And so we lift our gazes not to what stands/ between us,/ but what stands before us.

Estava a fechar as notas quando reparei que não eram só 2 filhos. Era o Ivo, de 7 anos, o Rúben, de 6 anos e a Beatriz... A Beatriz. A Beatriz. Bruno Candé Marques, o filho do “antenejano branco” (risos – como se os alentejanos fossem brancos e não torrados pelo amor) deixou uma menina, com 3 anos, sozinha, sem pai.

Amanhã é dia 27 de Julho. 27. Há dois meses vivia eu o quadragésimo quarto ano do 27 de Maio em Angola pensando que... Agora apetece-me cantar: ó lé lé lé lé lé lé, fidjus, fidjus da na fuga. Talvez a Dona Candi Candé Marques reconheça as minhas lágrimas nas delas, agora que percebo que há uma menina que vai ser mulher e que não vai ter pai.

Quantos dos seis tiros atingiram Beatriz? E o quanto é que os tiros tiraram a Beatriz? Aos 44 anos de balas aprendi a somar:

A primeira bala tirará a Beatriz o colo do pai no regresso da escola.

A segunda bala tirará a Beatriz o riso orgulhoso do pai no dia da sua graduação.

A terceira bala tirará a Beatriz o ombro do pai no dia em que a meninice a fizer perder-se de amores por um amor errado.

A quarta bala tirará a Beatriz o braço do pai a caminho dos altares em que se brinda à vida.

A quinta bala, falhada, não tirará a Beatriz a dureza de uma vida sem pai.

E a sexta bala? A sexta bala igualmente falhada? Atingirá Beatriz aonde? Nos livros da escola que a mãe pagará sozinha? Nas aulas de ginástica que a mãe sozinha pode não conseguir suportar? No quarto mobilado que a mãe sozinha pode não conseguir decorar? Nas tardes a aprender a andar naquela bicicleta que a mãe sozinha pode não conseguir comprar?

A nós, mulheres, cabe-nos salvaguardar que o Estado não permita que a sexta bala seja mais uma bala perdida a atingir a vida daquelas crianças a quem uma indeminização de 120 mil euros não bastará para criar, alimentar, vestir, calçar, educar, formar, ensinar a dançar e preparar três crianças amanhã cidadãos a - junto a um banco e em cada uma ruas onde possam tombar homens ou mulheres negros, brancos, mestiços, hindus ou nipónicos, héteros, homos, bi, trans, sexuais ou assexuados, de direita, esquerda, liberais, socialistas, comunistas ou social-democratas, cristãos, católicos, muçulmanos, judeus, protestantes, cépticos, agnósticos ou ateus – plantarem, cada um, o seu jacarandá em Lisboa.

Dia 27 de Maio. À minha frente repousa cópia do recibo emitido pela Comissão para a Averiguação e Certificação de Óbito de Vítimas dos Conflitos Políticos onde consta como prazo de resposta 30 dias. Passaram 60 e o completo silêncio inunda-se em acusações: “Que filha é essa que bate palmas ao Presidente do partido que lhe matou o pai?” Que filha sou eu, pergunto-me? Que espécie de filha é que sou para acreditar num país que me abandonou ao ranço?

Beatriz não será como eu. Asseguremos-lhe isso. Por todas.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários