Terapia génica: uma chave para o tratamento de doenças raras?

Em 2012 foi aprovado no mundo ocidental o primeiro medicamento de terapia génica para tratar uma doença ultra-rara. Outros sucessos se seguiram.

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André Caetano

A terapia génica é uma das áreas com maior impacto na área da biomedicina com um enorme potencial no tratamento de diversas doenças.

Genes como alvos terapêuticos do futuro?

Nos últimos anos foram alcançados sucessos extraordinários no tratamento de doenças genéticas raras. Graças a avanços nos domínios da biomedicina e da biotecnologia, é agora possível utilizar cada um dos nossos genes como medicamentos através de abordagens de terapia génica. Os genes são tipicamente transportados com o auxílio de vectores, virais ou não virais. Entre estes, os virais são mais eficazes e utilizados com maior frequência, uma vez que permitem tirar partido da capacidade que os vírus desenvolveram ao longo de milhões de anos para infectarem as nossas células. Os vectores virais não são mais do que vírus em que os genes patogénicos foram removidos e substituídos pelos genes terapêuticos.

Entre estes vírus que foram modificados para cumprirem as funções de transporte de genes contam-se os adenovírus, utilizados nas vacinas contra o SARS-CoV-2 (AstraZeneca e Johnson), os lentivírus, ou os vírus adenoassociados, estes últimos particularmente atractivos em termos de segurança, dado que o vírus selvagem não causa doença.

Qualquer um destes vectores transporta sequências de ácidos nucleicos que podem permitir diferentes modalidades de terapia génica: 1) a adição de um gene em falta ou insuficiente; 2) o silenciamento de um gene mutado que causa doença; 3 a reparação de um gene defeituoso. Tipicamente, uma única administração destes vectores é suficiente para inserir de forma potencialmente permanente o gene terapêutico nas células alvo. Desta forma, a terapia génica permite uma alteração de paradigma em termos de tratamento, dado que um único tratamento pode permitir um efeito para toda a vida.

Quando começou a terapia génica?

O primeiro ensaio clínico de terapia génica foi liderado pelo investigador norte-americano French Andersson, que utilizou um retrovírus para inserir uma cópia do gene (da desaminase da adenosina) em falta nas células que originam as células do sangue – células hematopoiéticas – de duas crianças com uma imunodeficiência severa. O objectivo deste procedimento foi permitir que estas pudessem desenvolver um sistema imunitário normal. O ensaio demonstrou a segurança do procedimento e foi importante para impulsionar a estratégia.

Infelizmente alguns anos depois, em 1999 e 2000, no decurso de outros ensaios clínicos faleceram dois doentes. Estes acidentes trágicos causaram grande desânimo na comunidade científica e na indústria farmacêutica com um abrandamento da investigação na área durante uma década. No entanto, esse tempo permitiu o aperfeiçoamento dos vectores e a investigação de outras aplicações: tais como para produção modelos de doença, silenciamento de genes, reprogramação celular ou edição e reparação de genes.

Os avanços referidos foram já galardoados com três prémios Nobel, com enorme relevância para estudar as doenças raras, assim como para desenvolver e testar novas terapias: Craig Mello e Andrew Fire em 2006 pela descoberta da interferência de RNA; Shinya Yamanaka e John B. Gurdon em 2012 pela reprogramação celular de células diferenciadas em células estaminais pluripotentes; e Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier pela descoberta do sistema CRISP-Cas9 para edição de genes.

Finalmente, em 2012 é aprovado no mundo ocidental o primeiro medicamento de terapia génica para tratar uma doença ultra-rara associada a uma mutação num gene – o Glybera. Outros sucessos se seguiram no tratamento da amaurose de Leber, uma doença associada a uma mutação que conduz à perda irreversível da visão, que hoje em dia se consegue tratar com o Luxturna, um medicamento baseado em vírus adenoassociados (AAV). Também no tratamento da leucemia linfoblástica aguda foi alcançado grande sucesso com o Kymriah, um medicamento baseado em linfócitos T modificados com o auxílio de lentivírus. Um dos mais extraordinários sucessos foi alcançado com o Zolgensma no tratamento da atrofia muscular espinhal, um medicamento baseado em AAV administrados por via intravenosa. Crianças com esta doença não teriam uma esperança de vida para além dos dois anos de idade e tratadas precocemente com este medicamento poderão ter uma vida relativamente normal.

Faz-se terapia génica em Portugal?

Estes avanços na terapia génica também têm sido explorados no nosso país. No Centro de Neurociências e Biologia Celular e no Centro de Inovação em Biomedicina e Biotecnologia da Universidade de Coimbra tem-se vindo a desenvolver estratégias de terapia génica para tratar doenças neurológicas, oncológicas e outras.

Entre estas conta-se a doença de Machado-Joseph, uma doença neurodegenerativa rara, mas prevalente em regiões do nosso país. Trata-se de uma doença que causa perda da capacidade de controlo motor e enorme sofrimento a doentes e famílias. Os resultados que obtivemos com estratégias de silenciamento do gene mutado, transplantação de células corrigidas e edição de genes são muito promissores, dando-nos confiança de que a breve trecho alcançaremos um tratamento eficaz.

A comunidade biomédica portuguesa encontra-se particularmente bem preparada para contribuir para o desenvolvimento de medicamentos de terapia génica, uma vez que tem um conjunto de investigadores dedicados ao estudo das bases moleculares de doença, ao desenvolvimento de ferramentas biotecnológicas e à sua translação para os modelos animais e para a investigação clínica. Acreditamos que o investimento no desenvolvimento deste tipo de medicamentos poderá tirar o máximo partido duma comunidade científica extraordinariamente competente e impulsionar a recuperação do tecido económico nacional e deveria ser uma prioridade no Plano de Recuperação e Resiliência pelo seu potencial impacto na sociedade na próxima década.

Autores: Luís Pereira de Almeida (Centro de Neurociências e Biologia Celular e Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra)
Ilustração: André Caetano
Produção e revisão: Carolina Caetano, Marta Quatorze e João Cardoso​
Coordenação do projecto: Sara Varela Amaral

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