Os donos do Afeganistão

Entre 2014 e 2019 o Ocidente encontrou no Daesh um inimigo. Entretanto o Daesh perdeu grande parte dos seus recursos territoriais, energéticos, financeiros e humanos, desintegrando-se quase até à extinção; e eis que o grande público volta a ouvir, com cada vez mais frequência, a familiar palavra taliban. A razão para tal acontecer deve-se sobretudo à declaração de 14 de abril do Presidente Joe Biden e respetivas consequências.

Desde o anúncio de Joe Biden, sobre a retirada das tropas norte-americanas planeadas para setembro de 2021, que o controlo do território afegão tem mudado de mãos a um ritmo mais acelerado. Algumas fontes estimam que cerca de metade do país já se encontra dominado pelos talibans e a liderança do grupo armado fala em 85% do território controlado. Em suma, parece ser uma questão de meses até que todo o Afeganistão seja conquistado pelos Talibã.

O processo de tomada de poder já tinha começado antes do anúncio de Biden. A revista Time estimou em 2016 que 20% do território era dominado pelos talibans. Mais recentemente, designadamente desde o início de 2020, as conversações entre os talibans e o débil governo afegão sobre o futuro político do país revelaram-se inconclusivas sobre temas cruciais, e.g. se o país deve ou não seguir o rumo duma democracia; e, simultaneamente no campo de batalha, vitórias importantes foram alimentando a sede de poder grupo armado.

Com o início da saída de cena dos EUA, os russos não perderam a oportunidade de começar a exercer influência, tal como aconteceu na Síria. Apesar de considerarem os talibans como uma organização terrorista, a Rússia recebeu recentemente uma delegação do grupo armado com o objetivo de tranquilizar Vladimir Putin sobre a estabilidade na Ásia Menor. O habitual pragmatismo russo nas relações internacionais revela os Talibã como, cada vez mais, donos e senhores do Afeganistão.

Quem são os talibans? A palavra significa estudantes, em pastó (afegão). O grupo nasce precisamente a partir da união dum grupo de estudantes de madraças afegãs e paquistanesas, veteranos da Guerra do Afeganistão contra os soviéticos, que ganha preponderância pelas armas durante a Guerra Civil Afegã. Com o fim do conflito, os vitoriosos talibans instalam um emirato que chega a dominar 90% do território até à intervenção militar norte-americana a partir de 2001, que desferiu um golpe quase mortal à organização. Contudo, manter a paz revelou-se mais problemático do que ganhar uma guerra e o tempo esteve, está e estará do lado taliban, tal como diz o conhecido provérbio atribuído aos afegãos: “Vocês têm os relógios, mas nós temos o tempo”. Neste sentido, os talibans reagruparam no Paquistão e alimentaram uma guerra de guerrilha e de desgaste que custou 2 biliões de dólares às forças aliadas e resultou em dezenas de milhares de vítimas militares e civis.

Ao longo da sua existência o grupo tem sido maioritariamente constituído por membros da etnia pashtun (um grupo étnico iraniano dominante no Afeganistão e com forte presença no Paquistão), bem como outras etnias iranianas e turcas presentes na Ásia Menor e Médio Oriente. Adicionalmente os talibans tiveram o apoio crucial das forças militares paquistanesas e da Al Qaeda que, com maiores ou menores discordâncias ao longo do tempo (em muitas ocasiões, resultantes do uso frequente do código tribal pasthun pré-islâmico), coincidiram na mundividência e interpretações radicais da lei islâmica no âmbito do vasto enquadramento sunita.

Com saída das forças aliadas do Afeganistão teme-se o típico caos e aproveitamento por parte de grupos radicais, decorrente do vazio de poder deixado. Um desses grupos é o Daesh-Khorasan (ramo do autoproclamado Estado Islâmico na região), combatido pelos Talibã que aproveitam a ocasião para encarnarem a figura de força de autoridade no país.

O poderio dos talibans não é apenas explicado pelo volume dos seus recursos militares e humanos. A sua força alimenta-se de vários fatores, nomeadamente: da narrativa respeitante ao orgulho imemorial que os afegãos têm sobre a sua invencibilidade face ao invasor externo; do apelo salvífico da guerra santa contra os infiéis; e da compreensão aprofundada da dinâmica sociocultural do Afeganistão tribal.

O conflito no Afeganistão não pode ser resolvido militarmente, como perceberam os norte-americanos e antes deles os soviéticos, britânicos e muitos outros povos e impérios ao longo da história. Neste contexto, advinha-se um cenário em que os Talibã não só terão o monopólio incontestável da violência no país, mas também serão os inevitáveis interlocutores do Afeganistão na arena internacional.

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