Na Covilhã, o Wool faz as paredes falar há dez anos

O Wool desenrola o novelo da história da Covilhã desde 2011. Na décima edição, o festival de arte urbana deixa na cidade mais quatro murais que já lhe pertenciam mesmo antes de terem sido pintados, diz quem dá as paredes aos artistas. Há visitas guiadas, uma exposição e muita arte onde tropeçar até 4 de Julho.

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O mural de Marta Lapeña

Nuno Sarmento está a desenrolar a história do Wool, enquanto Lara Seixo Rodrigues lhe espreita os desenhos por cima do ombro e localiza no tempo e no espaço as paredes que começaram a falar há dez anos. 

Por estes dias, e até 4 de Julho, o festival de arte urbana volta a mexer na cidade. Na fachada atrás da Câmara da Covilhã, Marta Lapeña está a deixar a pincel mais uma memória da indústria dos lanifícios. Deu-lhe uma cara, a de uma criança-mulher que conheceu numa fotografia com pouca resolução. Numa rua já fora do centro histórico envelhecido da cidade em Castelo Branco, Daniel Eime senta-se no andaime a retratar uma outra trabalhadora, ela com o tear, ele com stencil. As histórias das operárias anónimas poderão ser desconhecidas, mas estão longe de serem estranhas a quem por ali passa todos os dias. 

Para Lara, esta narrativa identitária era não negociável. Há, vai descobrindo alegremente, muita matéria-prima adormecida à espera de ser transformada em património cultural. E embora não seja possível passear pelo centro histórico sem se ser repetidamente surpreendido por uma das 40 instalações esculpidas, estampadas, pintadas e pulverizadas na última década, ter dois arquitectos nascidos na Covilhã e uma historiadora de arte na equipa do festival de arte urbana parece ajudar a que “todas elas respirem muito bem aqui”.

Na cidade beirã onde nasceu, e onde os taggers proliferam desinibidos pelas paredes ao abandono, Lara Seixo Rodrigues não dá a pintar telas de cimento só porque sim. “Há uma harmonia muito grande apesar de termos uma infinidade de estéticas e de técnicas”, diz a arquitecta ao passar ao lado da Igreja de Santa Maria, onde um humanóide fiadeiro de mãos gigantes da dupla portuguesa Arm Collective prolonga com tinta os azulejos azuis e brancos do século XX. É aquele o primeiro mural do Wool, mas também, e se quisermos sair do concreto das paredes, o primeiro momento dos workshops de arte urbana para mais velhos Lata 65 e de outros festivais organizados pela curadora que gosta de “fazunchar”, em Figueiró dos Vinhos e em Estarreja, por exemplo. “Esta parede mudou a minha vida”, diz.

Numa das fachadas mais altas, os uruguaios Florencia Durán e Camilo Nuñez pintam as caras deles e dos amigos nos exploradores da primeira expedição científica à Serra da Estrela, em 1881 (que, na altura, com mais vozes de pastores poderá ter soado assim).

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Florencia Durán e Camilo Nuñez Ben Derico
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O mural que o colectivo Licuado está a deixar próximo do Arquivo Municipal da Covilhã Ben Derico

Usando artigos publicados há 140 anos como referência fotográfica, e sem conseguirem distinguir muitas caras, puseram-se a eles e aos amigos a encarnar as diferentes personagens da Sociedade de Geografia de Lisboa que partiram em direcção à cordilheira mais alta em Portugal. Antes de fazerem a viagem para a Covilhã, os dois amigos que constituem o colectivo Licuado, um dos precursores da arte urbana pública na América do Sul, tiraram as fotografias em casa, explica Florencia, com roupas inspiradas nas usadas pelos cientistas e com o fundo das montanhas adicionado em Photoshop. O resultado, como sempre inspirado nas figuras da arte clássica, desde as texturas às poses e iluminação, começa a ganhar forma em frente ao arquivo municipal, onde está desde 2018 o mural de Frederico Draw em homenagem ao poeta E. M. de Melo e Castro.

Este ano, a programação do Wool é “mais alargada”. O roteiro pelos murais já tem uma app com informações e curiosidades sobre as instalações, as mesmas que são contadas nas visitas guiadas que partem de A Tentadora, uma antiga mercearia que a museógrafa Elisabet Carceller e o arquitecto Pedro Seixo Rodrigues, irmão de Lara, transformaram numa loja e espaço cultural para a cidade. Por estes dias, está transmutada no quartel-general do Wool.

O “rolo” de papel em que Nuno Sarmento faz a narração contínua dos últimos dez anos já vai em 20 metros. “Parece que estamos a mudar o rolo da máquina”, comenta, enquanto faz aparecer os desenhos de artistas, lojas de comércio local, edifícios e moradores. O desenhista deverá traçar mais dez metros ao mesmo tempo que decorre a exposição multidisciplinar de Jofre Oliveras e Lucía Herrero, que deita a língua de fora à inacção política face à emergência climática, e a acção comunitária que vai enlaçar o próximo mural de Aheneah.

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Um dos desenhos no rolo de Nuno Sarmento Ben Derico
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Começa a ser mais difícil, ri-se Lara Seixo Rodrigues, mas ainda há paredes estratégicas à espera de mostrarem as histórias que ouviram. “É um círculo, 300 metros de diâmetro, não tem mais. Parece que andas imenso para descobrires as 40 peças, mas é só isto”, diz. “Ainda há muito por fazer. Quando pensamos que a Covilhã é uma cidade no interior, diria que há mesmo muito por fazer. É preciso continuar a trazer cultura para aqui. Nós conseguimos mostrar este território de forma completamente diferente ao mundo”, acredita. Por isso, eles vão continuar desenrolar o novelo.

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