Não somos feministas se não defendemos os direitos das mulheres que fazem a nossa roupa

Depois de estarmos no Tribunal Uigur percebemos que a questão dos direitos humanos em Xinjang é, fundamentalmente, uma questão de direitos da mulher.

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Reuters/THOMAS PETER

Os campos de reeducação em Xinjiang, na China, destinados aos uigures – uma minoria étnica com identidade e religião muçulmanas – têm sido, nos últimos anos, alvo de grande atenção devido às acusações de violações de direitos humanos e de trabalho escravo.

Entre os dias 4 e 7 de Junho reuniu-se, em Londres, o Tribunal Uigur, um órgão independente para averiguar as acusações de direitos humanos na região uigur e contra pessoas pertencentes àquela minoria étnica. Foi lá que ouvimos directamente os testemunhos de sobreviventes e de outros peritos na área de advocacia, saúde, imigração e investigação e foi também durante esses dias que percebemos que a questão dos direitos humanos em Xinjiang é, fundamentalmente, uma questão de direitos da mulher.

No ecrã, por cima do painel do júri independente do tribunal, foi transmitido um vídeo que juntava sobreviventes, pessoas resgatadas ou libertadas dos campos, na maioria mulheres. Apesar de precisarmos de tradução, estas pessoas não deixaram nada por transmitir.

Um dos grandes factores de enorme opressão para as mulheres uigures não é “apenas” a reeducação na área da religião, cultura e trabalho escravo: é a interferência com os seus direitos sexuais e reprodutivos!

Nestes campos, as mulheres são as mais vulneráveis a diversas formas de abuso e exploração sexuais, nomeadamente através de violação sexual, aborto não voluntário e esterilização forçada. Várias testemunhas confirmaram que muitas mulheres e jovens eram levadas por guardas a meio da noite para uma sala escura onde eram violadas física e artificialmente. As testemunhas também referiram que muitas mulheres uigures são forçadas a abortar, havendo muitos casos de aborto não voluntário a partir dos cinco meses de gravidez. Se o bebé sobrevivesse, recebia uma injecção mortal.

Uma testemunha de etnia uigur, que trabalhou num hospital na região, revelou que 70% das mulheres uigures teriam tido os seus úteros removidos, sem consentimento prévio, após uma consulta médica relacionada com o sistema reprodutor ou quando sujeitas a uma cirurgia noutra área. Quando lhe aconteceu o mesmo, indignada, a testemunha questionou o médico que a atendia, que lhe explicou que “cada médico tem de remover cerca de 2000 úteros (de mulheres uigures) por ano”. “Esse é o nosso trabalho, temos que de o fazer”, conclui.

O testemunho destas mulheres acusou estarmos na presença de um genocídio, o que confirma o declínio na taxa de natalidade uigur. E apesar de estas violações acontecerem do outro lado do mundo, somos também cúmplices destes crimes. Como? Através das nossas escolhas enquanto consumidores.

Uma em cada cinco peças de algodão no mercado global de vestuário são produto de trabalho escravo da população uigur. As marcas que promovem colecções conscientes e de empoderamento das mulheres ocidentais são as mesmas que financiam o atentado aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres uigures. Uma das maiores descobertas de qualquer mulher consumidora com capacidade para ver para além do óbvio compreende que a única diferença entre nós, as autoras, a testemunha e a leitora é o país da nossa origem. A raça é igual, o contexto não. Ou chamemos-lhe sorte. Não podemos é continuar a deixar ao acaso a opção entre comprar a peça x ou y, perceber de onde vem e questionar a etiqueta.

A nossa capacidade de eleger não é sorte, é consciência. Não podemos ser feministas (no verdadeiro sentido da palavra) se não defendermos os direitos de todas as mulheres, incluindo aquelas por detrás das nossas roupas, aquelas que são vítimas de trabalho escravo, de exploração e de abuso sexuais.

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